sexta-feira, 8 de março de 2019

Evocando o Dr. Josias Gyll

             Outro dia, durante o almoço com um amigo comum, perguntei pelo Dr. Josias Gyll, que eu não via desde que, a 27 de Novembro de 2010, participara na abertura da exposição «Denominador Comum», promovida pelo Hotel Viva Marinha, para que expressamente haviam sido convidados artistas que, tendo embora em comum o gosto pelas artes e pela pintura em particular, eram, no entanto, profissionais de outras áreas. Josias Gyll aí expôs «Mãe», num forte azul surrealista, e a beleza dos monstros em «Axá»…
            «Já faleceu», respondeu-me. Soube agora que o passamento se deu a 31 de Maio de 2015, ia fazer em breve 92 anos, mas nunca deixara de trabalhar. Aliás, a 1-10-2014, a Misericórdia de Lisboa, após afirmar que, para ele, a Medicina, mais do que uma profissão, era uma missão, referia-se assim à sua actividade:
            «Aos 92 anos, o médico Josias Gyll continua a receber doentes de vários pontos do país, no seu consultório, em Cascais. Natural de Ílhavo, Aveiro, licenciou-se em Coimbra, em 1948, e seguiu um percurso no âmbito da medicina geral e familiar. Hoje, ocupa-se sobretudo da Geriatria, área vocacionada para a prevenção e tratamento das doenças dos mais velhos».
            Muitos se recordarão em Cascais da sua figura: alto, invariavelmente vestindo de branco, completamente careca numa época em que eram raríssimos os que adoptavam esse modo de apresentação… Também privilegiava os carros brancos, nomeadamente um «2 cavalos» em que gostava de se deslocar.
Quadro a óleo, da autoria do Dr. Josias Gyll
            Tive ocasião de privar com ele durante longos anos, praticamente desde que veio para Cascais. E, amiúde, além das consultas – foi o nosso médico durante muito tempo –, falávamos de Arte, porque, nas horas livres, à pintura se dedicava, quadros plenos de uma interioridade forte, agressivos até para que a Arte despertasse reflexão. Tenho bem presente, além do quadro que ilustra este texto e que é da minha colecção, um outro, que ofereci a um familiar: num deserto vasto e alaranjado, uma solitária pedra; por detrás, escrito na sua letra angulosa inconfundível, de caneta de feltro preta, a frase bíblica: «Quem de vós estiver sem pecado, que atire a primeira pedra!»
            Emprestou-me, um dia, a tese de doutoramento policopiada de um biólogo que estudara o comportamento dos animais, numa época em que a Etologia dava os primeiríssimos passos e ambos nos interessávamos por isso. Não me ocorre agora o nome do cientista; lembro-me, porém, como se fosse hoje, do que Josias Gyll me disse:
            – Leve, leia e não se coíba de sublinhar ou de escrever ao lado os seus comentários. Assim, quando eu voltar a ler o livro, não lerei apenas o que o autor escreveu, mas reflectirei sobre o que a si lhe pareceu digno de nota.
            Nunca mais esqueci esta máxima!
            Recordo bem as ‘guerras’ que Josias Gyll teve de travar com a Ordem dos Médicos, que o impedia de se apresentar como geriatra, porque essa especialidade, que ele tirara no estrangeiro, ainda não era reconhecida entre nós.
            Prestou serviço no Posto das Caixas do Estoril, no âmbito atrás referido da Medicina Geral e Familiar; foi, durante muitos anos, quem se encarregou das autópsias no cemitério da Guia, pelo que se lhe poderia atribuir até a designação de «médico forense». Foram, todavia, sobretudo os problemas dos mais velhos que o interessaram e sobre eles não deixou, inclusive, de dar testemunho em textos que, por sugestão minha, chegou a redigir para o Jornal da Costa do Sol. Aliás, é essa vertente de geriatra que especialmente se frisa no citado texto da Misericórdia de Lisboa:
            «De fato branco e sorridente, Josias Gyll aceitou o convite para estar presente no IV Congresso de Ortopedia Geriátrica realizado no passado dia 26 [Setembro de 2014], no Hospital de Sant'Ana, na Parede, pertencente à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. E participou do debate falando da importância do sol e da vitamina D no bem-estar das pessoas. "Não deixem de apanhar sol", receita.
            O bem-estar é, aliás, o aspecto que mais procura cuidar nos doentes de idade avançada e entre os quais predominam os que sofrem de neuroses e de demências. Vêm de Braga, Barcelos, Santarém e até dos Açores para o consultar.
            "Estou em disponibilidade permanente, mais para atender aos doentes, do que à doença", diz».
            Completar-se-ão em breve 4 anos sobre a sua morte. Uma morte que (pesa-me!) me passou despercebida. E quiçá a muitos outros também. Creio, todavia, que a actividade do Dr. Josias Gyll em prol dos seus doentes e da comunidade não deveria ser esquecida em Cascais. Temos ruas com nomes de advogados e de médicos que, com a sua profissão, honraram esta vila. Josias Gyll também superiormente a honrou. Não deveria ser esquecido!

                                                           José d’Encarnação

Excerto de um texto inédito, manuscrito, do Dr. Josias Gyll

Publicado em Cyberjornal, edição de 07-03-2019:
http://www.cyberjornal.net/cultura/cultura/quem-e-quem/evocando-o-dr-josias-gyll

Post-scriptum: Acabo de receber de sua viúva, Raquel Gil, a seguinte informação, que muito agradeço e que, naturalmente, me escuso de comentar, porque retrata uma daquelas inconcebíveis atitudes sob a qual se escreve SEM COMENTÁRIOS:
«Só por curiosidade, e uma vez que no seu texto menciona nisso - um mês depois da sua morte, recebia uma carta da Ordem dos Médicos, onde era reconhecido finalmente como especialista de Geriatria».
Post-scriptum 2:  A tese referida no texto é de António Bracinha Vieira, que a defendera em 1979, sob o título «Psiquiatria e etologia: para um modelo bio-comportamental da psicopatologia»

4 comentários:

  1. De: Antónia Carreira (solicitadora)
    sexta-feira, 8 de Março de 2019 17:51

    Grande médico, é verdade.
    Foi meu médico no posto do Estoril, precisamente e, mais tarde, já no âmbito da minha actividade, privei de perto com ele no Tribunal de Cascais.

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  2. Que maravilha de texto. E que pena só ter conhecido o Dr. Josias Gyll depois da sua morte, e pelas suas palavras.
    Um ser humano que dedica parte da vida à Geriatria, mesmo que a Ordem dos Médicos teime em negar-lhe competências para o fazer, que preza a reflexão, o sol, a vida saudável e que ainda se diz em "disponibilidade permanente para atender a doentes, mais do que à doença" merecia uma homenagem em Vida. Se a não teve, ao menos que tenha uma homenagem póstuma para honrar dignamente a sua memória.
    Um abraço
    P.

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  3. O Dr. Josias Gyll foi o meu médico e ajudou-me bastante num período difícil. Como referido, gostava de pintar e escrever sobre a essência do homem, e preocupava-se genuinamente com os seus pacientes, com uma lucidez tremenda para a idade que tinha quando o conheci - quase 90 anos. Hoje em dia, num mundo onde tudo é para ontem, fazem falta mais Josias, que entendam os pacientes como seres com uma dimensão humana única que precisam de compreensão e ajuda. Merecia, de facto uma distinção.

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  4. Maravilhoso ser, maravilhoso texto! Obrigada|

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