«Já
faleceu», respondeu-me. Soube agora que o passamento se deu a 31 de Maio de
2015, ia fazer em breve 92 anos, mas nunca deixara de trabalhar. Aliás, a 1-10-2014, a Misericórdia de
Lisboa, após afirmar que, para ele, a Medicina, mais do que uma profissão, era
uma missão, referia-se assim à sua actividade:
«Aos 92 anos, o médico Josias Gyll
continua a receber doentes de vários pontos do país, no seu consultório, em
Cascais. Natural de Ílhavo, Aveiro, licenciou-se em Coimbra, em 1948, e seguiu
um percurso no âmbito da medicina geral e familiar. Hoje, ocupa-se sobretudo da
Geriatria, área vocacionada para a prevenção e tratamento das doenças dos mais
velhos».
Muitos
se recordarão em Cascais da sua figura: alto, invariavelmente vestindo de branco,
completamente careca numa época em que eram raríssimos os que adoptavam esse
modo de apresentação… Também privilegiava os carros brancos, nomeadamente um «2
cavalos» em que gostava de se deslocar.
Quadro a óleo, da autoria do Dr. Josias Gyll |
Tive
ocasião de privar com ele durante longos anos, praticamente desde que veio para
Cascais. E, amiúde, além das consultas – foi o nosso médico durante muito tempo
–, falávamos de Arte, porque, nas horas livres, à pintura se dedicava, quadros
plenos de uma interioridade forte, agressivos até para que a Arte despertasse reflexão.
Tenho bem presente, além do quadro que ilustra este texto e que é da minha
colecção, um outro, que ofereci a um familiar: num deserto vasto e alaranjado,
uma solitária pedra; por detrás, escrito na sua letra angulosa inconfundível,
de caneta de feltro preta, a frase bíblica: «Quem de vós estiver sem pecado,
que atire a primeira pedra!»
Emprestou-me,
um dia, a tese de doutoramento policopiada de um biólogo que estudara o
comportamento dos animais, numa época em que a Etologia dava os primeiríssimos
passos e ambos nos interessávamos por isso. Não me ocorre agora o nome do
cientista; lembro-me, porém, como se fosse hoje, do que Josias Gyll me disse:
–
Leve, leia e não se coíba de sublinhar ou de escrever ao lado os seus
comentários. Assim, quando eu voltar a ler o livro, não lerei apenas o que o
autor escreveu, mas reflectirei sobre o que a si lhe pareceu digno de nota.
Nunca
mais esqueci esta máxima!
Recordo
bem as ‘guerras’ que Josias Gyll teve de travar com a Ordem dos Médicos, que o
impedia de se apresentar como geriatra, porque essa especialidade, que ele
tirara no estrangeiro, ainda não era reconhecida entre nós.
Prestou
serviço no Posto das Caixas do Estoril, no âmbito atrás referido da Medicina Geral
e Familiar; foi, durante muitos anos, quem se encarregou das autópsias no
cemitério da Guia, pelo que se lhe poderia atribuir até a designação de «médico
forense». Foram, todavia, sobretudo os problemas dos mais velhos que o
interessaram e sobre eles não deixou, inclusive, de dar testemunho em textos
que, por sugestão minha, chegou a redigir para o Jornal da Costa do Sol. Aliás, é essa vertente de geriatra que
especialmente se frisa no citado texto da Misericórdia de Lisboa:
«De
fato branco e sorridente, Josias Gyll aceitou o convite para estar presente no
IV Congresso de Ortopedia Geriátrica realizado no passado dia 26 [Setembro de
2014], no Hospital de Sant'Ana, na Parede, pertencente à Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa. E participou do debate falando da importância do sol e
da vitamina D no bem-estar das pessoas. "Não deixem de apanhar sol",
receita.
O
bem-estar é, aliás, o aspecto que mais procura cuidar nos doentes de idade
avançada e entre os quais predominam os que sofrem de neuroses e de demências.
Vêm de Braga, Barcelos, Santarém e até dos Açores para o consultar.
"Estou
em disponibilidade permanente, mais para atender aos doentes, do que à
doença", diz».
…
Completar-se-ão
em breve 4 anos sobre a sua morte. Uma morte que (pesa-me!) me passou
despercebida. E quiçá a muitos outros também. Creio, todavia, que a actividade
do Dr. Josias Gyll em prol dos seus doentes e da comunidade não deveria ser
esquecida em Cascais. Temos ruas com nomes de advogados e de médicos que, com a
sua profissão, honraram esta vila. Josias Gyll também superiormente a honrou.
Não deveria ser esquecido!
José d’Encarnação
Excerto de um texto inédito, manuscrito, do Dr. Josias Gyll |
Publicado em Cyberjornal, edição
de 07-03-2019:
http://www.cyberjornal.net/cultura/cultura/quem-e-quem/evocando-o-dr-josias-gyll
Post-scriptum: Acabo de receber de sua viúva, Raquel Gil, a seguinte informação, que muito agradeço e que, naturalmente, me escuso de comentar, porque retrata uma daquelas inconcebíveis atitudes sob a qual se escreve SEM COMENTÁRIOS:
«Só por curiosidade, e uma vez que no seu texto menciona nisso - um mês depois da sua morte, recebia uma carta da Ordem dos Médicos, onde era reconhecido finalmente como especialista de Geriatria».
Post-scriptum 2: A tese referida no texto é de António Bracinha Vieira, que a defendera em 1979, sob o título «Psiquiatria e etologia: para um modelo bio-comportamental da psicopatologia»
Post-scriptum: Acabo de receber de sua viúva, Raquel Gil, a seguinte informação, que muito agradeço e que, naturalmente, me escuso de comentar, porque retrata uma daquelas inconcebíveis atitudes sob a qual se escreve SEM COMENTÁRIOS:
«Só por curiosidade, e uma vez que no seu texto menciona nisso - um mês depois da sua morte, recebia uma carta da Ordem dos Médicos, onde era reconhecido finalmente como especialista de Geriatria».
Post-scriptum 2: A tese referida no texto é de António Bracinha Vieira, que a defendera em 1979, sob o título «Psiquiatria e etologia: para um modelo bio-comportamental da psicopatologia»
De: Antónia Carreira (solicitadora)
ResponderEliminarsexta-feira, 8 de Março de 2019 17:51
Grande médico, é verdade.
Foi meu médico no posto do Estoril, precisamente e, mais tarde, já no âmbito da minha actividade, privei de perto com ele no Tribunal de Cascais.
Que maravilha de texto. E que pena só ter conhecido o Dr. Josias Gyll depois da sua morte, e pelas suas palavras.
ResponderEliminarUm ser humano que dedica parte da vida à Geriatria, mesmo que a Ordem dos Médicos teime em negar-lhe competências para o fazer, que preza a reflexão, o sol, a vida saudável e que ainda se diz em "disponibilidade permanente para atender a doentes, mais do que à doença" merecia uma homenagem em Vida. Se a não teve, ao menos que tenha uma homenagem póstuma para honrar dignamente a sua memória.
Um abraço
P.
O Dr. Josias Gyll foi o meu médico e ajudou-me bastante num período difícil. Como referido, gostava de pintar e escrever sobre a essência do homem, e preocupava-se genuinamente com os seus pacientes, com uma lucidez tremenda para a idade que tinha quando o conheci - quase 90 anos. Hoje em dia, num mundo onde tudo é para ontem, fazem falta mais Josias, que entendam os pacientes como seres com uma dimensão humana única que precisam de compreensão e ajuda. Merecia, de facto uma distinção.
ResponderEliminarMaravilhoso ser, maravilhoso texto! Obrigada|
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