Perante o
poder do fast food, criou-se,
paralelamente, o movimento do slow food; cada
região começou a pensar no que deveria ser o seu prato característico; no quadro do «Projecto
Comunidade-Escola», os docentes incitaram os seus alunos a entrevistar avós e
bisavós, fazendo depois exposições e editando opúsculos com as receitas
tradicionais; as autarquias apoiaram a edição
de obras onde a gastronomia tinha também papel relevante; e as próprias
instituições museológicas acabaram por dar relevo a esse elemento, hoje
imprescindível, do património local.
Uma questão de identidade
«Um povo que
defende os seus pratos nacionais defende o território. A invasão armada começa
pela cozinha», escreveu um dos mais conceituados autores portugueses, Fialho de
Almeida (1857-1911). E, mais perto de
nós, o sociólogo Boaventura Sousa Santos proclamou:
«Do mesmo modo, à medida que se globaliza o hamburguer
ou a pizza, localiza-se o bolo de bacalhau
português ou a feijoada brasileira no sentido de que serão, cada vez mais,
vistos como particularismos típicos da sociedade portuguesa ou brasileira».
É, pois, na sequência dessa consciencialização que, a exemplo do que noutros países ocorria, o
Conselho de Ministros aprovou a resolução
nº 96/2000, de 26 de Julho, que «considera a gastronomia portuguesa como um bem
imaterial integrante do património cultural de Portugal»:
«Entendida
como o fruto de saberes tradicionais que atestam a própria evolução histórica e social do povo português, a
gastronomia nacional integra pois o património intangível que cumpre
salvaguardar e promover».
E aí se acrescenta,
desde logo, em termos de programa:
«O
reconhecimento de um tal valor às artes culinárias cria responsabilidades acrescidas
no que respeita à defesa da sua autenticidade, bem como à sua valorização e divulgação,
tanto no plano interno quanto internacionalmente», reconhecendo-se que «neste
sentido, tem vindo a ser desenvolvido há já alguns anos um conjunto de acções
visando inventariar, valorizar, promover e salvaguardar o receituário
português, com o objectivo primeiro de garantir o seu carácter genuíno e, bem
assim, de promover o seu conhecimento e fruição,
por forma, ainda, a que se transmita às gerações vindouras».
E preconiza-se
o levantamento do receituário tradicional; a criação
de uma base de dados; a identificação
das características que devem ter os produtos para serem devidamente
certificados; a promoção com
finalidades turísticas; a organização
de concursos a nível local, regional e nacional…
As iniciativas e… uma sugestão!
Por toda a
parte e sob (dir-se-ia…) todos os pretextos, nasceram dezenas de confrarias,
com os seus rituais devidamente calendarizados, os seus trajos típicos, as mais
diversas designações – Confraria do Queijo da Serra da Estrela, Gastronómica do
Leitão da Bairrada, do Bolo de Ançã, Confraria Gastronómica do Bucho de Arganil…
– cujo objectivo é preservar, divulgar e valorizar determinada iguaria regional
ou local.
Surgiram as
semanas ou as quinzenas gastronómicas. Criaram-se os concursos das «7
maravilhas» da mesa, das sobremesas… Cada localidade chamou a si o nome de
«capital» de determinado alimento: Sever do Vouga, capital do mirtilo; Santa
Luzia (Tavira, Algarve), capital do polvo… Redescobriram-se as ervas
aromáticas: o poejo, os orégãos, o alecrim, o rosmaninho, o tomilho… De novo,
se deu importância aos coentros, à salsa, à hortelã, inclusive porque se chegou
à conclusão que, além de emprestarem novos sabores aos alimentos, poderiam
dispensar facilmente o sal, por exemplo.
Hoje, a gastronomia
ocupa, por conseguinte, papel relevante em cada localidade, sendo bem aproveitara
para a sua promoção turística tanto
internacional como nacional. Não é raro ouvirmos alguém dizer-nos que á capaz
de percorrer cem quilómetros pata ir… a Almeirim, comer a sopa da pedra! Ou à
Bairrada saborear um leitão assado! Ou a Montemor-o-Velho à Festa da Enguia!...
Eu fico-me,
por agora, no meu Algarve e sugiro:
– como
entrada, pãozinho caseiro com azeitonitas temperadas, a que não podem faltar os
orégãos; e um pratinho de carapauzinhos alimados;
– uma sopa de
beldroegas (uma daquelas ervinhas humildes que têm bem requintado sabor);
– um
jantarinho de grão, que é a versão algarvia do cuscuz berbere (e não é a língua
árabe a maior fonte de inspiração para
os vocábulos gastronómicos portugueses?...);
– à sobremesa,
arroz doce, bem polvilhado de canela (sim, essa especiaria que os Portugueses trouxeram
do Oriente); ou, se se preferir, uma laranja, que não há outras iguais às do Algarve
– e como é que se diz ‘laranja’ em língua grega? Exacto: πορτοκάλι!
– após o café,
como digestivo, um licor: de poejo ou amêndoa amarga!
De comer e
chorar por mais!
Bom proveito!
Portugal-Post (Correio
luso-hanseático) [Hamburgo], No. 65, Maio de 2019, p. 20-23. Texto em
português, com tradução para alemão por Karin von Scheder-Schreiner)
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