quarta-feira, 15 de maio de 2019

Lavar os dentes


             Dei comigo a pensar, nos momentos matinais de uma operação tão comezinha e corriqueira como lavar os dentes. Nunca imaginara eu descrever os gestos inconscientemente mecânicos que ela implica e como – exactamente por serem inconscientes, sem necessidade de os acompanhar com o pensamento – podem ser momentos aproveitáveis.
            Uma primeira sensação, a de agradecimento: tenho água, tenho posses para a pasta dentífrica da minha preferência. Escovo os dentes como me ensinaram e como eu ensinei a meus filhos: na vertical, ora dum lado ora doutro. E lembrei-me daquele dia, em que, na sala de embarque para uma viagem aérea, a mãe pegara no telemóvel e insistentemente perguntava «E o Carlinhos já lavou os dentes?», como se não quisesse partir sem ter a certeza de que o seu Carlinhos lavara os dentes.
            O prazer que se sente nesses gestos. Aliás, aos actos de higiene está sempre ligada uma sensação agradável que instintivamente nos ajuda a praticá-los. Em nós e nos animais. Sinto o prazer do Spike, o labrador, quando o escovo; e o do Maio, gato, quando lhe passo a escova pelo dorso que se arqueia…
            Verifiquei hoje que é tudo automático: o pegar no copo e enchê-lo de água à torneira (amiúde me lembro da cidade do Cabo que não tem água potável – e dou graças a Deus!); o ir buscar a escova e tirar-lhe o resguardo; o estender da pasta (cuidado, não é preciso muita, que ‘no poupar está o ganho’); o referido escovar segundo as regras aprendidas logo na instrução primária, de prótese na mão esquerda à espera de escova ela também (e agradeço por ter prótese, que minha avó materna sempre a conheci completamente desdentada, porque no seu tempo não havia próteses ou dinheiro para elas); o alívio do bochechar final; a possibilidade de secar lábios e mãos numa toalha ou mesmo no toalhão de banho (privilégio este também!)...
            Tudo automático, pois. O pensamento, porém, fixara-se já, sem pressas nem inquietação, no que haveria para fazer nesse dia. E o bloquinho lá estava, no lugar certo, com o lápis ao pé, para, entre uma escovadela e outra, se necessário, ali apontar algo a não esquecer, o tema possível para a próxima crónica no Renascimento ou a pesquisa que importava ainda fazer para completar o raciocínio daquele artigo científico que está entre mãos…

                                                                 José d’Encarnação
 
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 754, 2019-05-15, p. 11.

1 comentário:


  1. João Paulo Gomes
    15 de maio às 16:29
    Tive um Labrador que adorava que lhe escovassem os dentes. Raça danada para a brincadeira e para comer!

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