segunda-feira, 5 de maio de 2014

O bailado “O Lago dos Cisnes”, numa intrigante versão

             No âmbito dos espectáculos integrados nas comemorações dos 650 anos da elevação de Cascais a vi, acolheu o Salão Preto e Prata do Casino Estoril, na tarde de domingo, 27 de Abril, o bailado “O Lago dos Cisnes”, de Tchaikovsky, interpretado pela companhia Quorum Ballet, com coreografia de Daniel Cardoso.
            Uma versão contemporânea, deveras arrojada na sua concepção e em que, como se lia numa das notas de apresentação, «os personagens da história original tornam-se intervenientes numa fábula humana contada na linguagem do tempo presente que acontece num asilo abandonado, lugar fértil em figuras bizarras e seres extremos. Entre a ficção e a realidade, exploram-se os defeitos, virtudes e impulsos mais humanos, transversais a todos os tempos. Entre o dia e a noite, a música vai trazer o engano, e o fascínio, a sedução e a loucura.»
            Também a «sinopse» que nos é proposta no programa constitui um texto denso, que explica, de facto, mas nos obrigaria a uma reflexão cuidada, impossível de fazer perante a outra densidade, a do espectáculo em si, pleno de pormenores deveras significativos. Ora leia-se o começo:
            «O dia nasce do lado de lá do muro do Asilo. Lá dentro a loucura tomou o lugar do quotidiano e os que ali habitam esquecem-se de quem foram. As vozes e os desejos são abafados pelas paredes gigantes deste exílio silencioso. No Asilo, as enfermeiras são as Rainhas mestras que comandam os movimentos dos pacientes; uma mulher limpa os desejos negros dos outros na sombra; um homem prisioneiro de um corpo enfermo, na sua loucura, transforma os seus desejos de Pássaro nos corpos dos pacientes. Como uma gaiola em que a ave não ousa bater as asas, o Asilo é uma jaula de gente.»
            E se a primeira e última imagem é a de um homem em cadeira de rodas e, confinados pelo «muro» – deitados sobre ele, batendo nele, aninhando-se nele, forçando-o a mudar de sítio –, os personagens retratam loucuras, extravagâncias e medos, os espectadores, nós, sentimo-nos na sua pele, às vezes; outras, porém, dar-nos-á, porventura, vontade de os repudiar.
            Estamos longe, pois, da história dos malvados feitiços que impedem o casamento da princesa encantada com o príncipe dos seus sonhos. E os cisnes não são níveas e mui elegantes bailarinas, mas o «rosto» do que de menos agradável se vê na paisagem humana e desumanizada deste bem devastador início do século XXI.
            Sem dúvida, um golpe de génio do galardoado director artístico e coreógrafo daniel Cardoso; sem dúvida, uma soberba interpretação de todos os componentes do – também galardoado – Quorum Ballet, fundado em 2005 e já com notável currículo nacional e internacional. Um espectáculo, porém, difícil de acompanhar numa primeira abordagem, tão prenhe, como está (em meu entender), do mais profundo anátema contra a avassaladora realidade em que, tal como nesse asilo de muro imponente, somos forçados a sobreviver. «Uma jaula de gente» – e é verdade!

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