Uma
versão contemporânea, deveras arrojada na sua concepção
e em que, como se lia numa das notas de apresentação ,
«os personagens da história original tornam-se intervenientes numa fábula
humana contada na linguagem do tempo presente que acontec e
num asilo abandonado, lugar fértil em figuras bizarras e seres extremos. Entre
a ficção e a realidade, exploram-se
os defeitos, virtudes e impulsos mais humanos, transversais a todos os tempos. Entre o dia e a noite, a música vai trazer o
engano, e o fascínio, a sedução e a
loucura.»
Também a «sinopse» que nos
é proposta no programa constitui um texto denso, que explica, de facto, mas nos
obrigaria a uma reflexão cuidada, impossível de fazer perante a outra
densidade, a do espectáculo em si, pleno de pormenores deveras significativos.
Ora leia-se o começo:
«O dia nasce do lado de lá
do muro do Asilo. Lá dentro a loucura tomou o lugar do quotidiano e os que ali
habitam esquecem-se de quem foram. As vozes e os desejos são abafados pelas
paredes gigantes deste exílio silencioso. No Asilo, as enfermeiras são as
Rainhas mestras que comandam os movimentos dos paci entes;
uma mulher limpa os desejos negros dos outros na sombra; um homem prisioneiro
de um corpo enfermo, na sua loucura, transforma os seus desejos de Pássaro nos
corpos dos paci entes. Como uma
gaiola em que a ave não ousa bater as asas, o Asilo é uma jaula de gente.»
E se a primeira e última
imagem é a de um homem em cadeira de rodas e, confinados pelo «muro» – deitados
sobre ele, batendo nele, aninhando-se nele, forçando-o a mudar de sítio –, os
personagens retratam loucuras, extravagâncias e medos, os espectadores, nós,
sentimo-nos na sua pele, às vezes; outras, porém, dar-nos-á, porventura,
vontade de os repudiar.
Estamos longe, pois, da
história dos malvados feitiços que impedem o casamento da princesa encantada
com o príncipe dos seus sonhos. E os cisnes não são níveas e mui elegantes bailarinas,
mas o «rosto» do que de menos agradável se vê na paisagem humana e desumanizada
deste bem devastador início do século XXI.
Sem dúvida, um golpe de génio
do galardoado director artístico e coreógrafo daniel Cardoso; sem dúvida, uma
soberba interpretação de todos os
componentes do – também galardoado – Quorum Ballet, fundado em 2005 e já com
notável currículo nacional e internacional. Um espectáculo, porém, difícil de
acompanhar numa primeira abordagem, tão prenhe, como está (em meu entender), do
mais profundo anátema contra a avassaladora realidade em que, tal como nesse
asilo de muro imponente, somos forçados a sobreviver. «Uma jaula de gente» – e
é verdade!
Publicado em Cyberjornal, edição de 2014-05-03:
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