sexta-feira, 9 de maio de 2014

Pelas veredas da História... em Sintra!

            Poderá parecer estranho que um cascalense venha falar de Sintra, que fica do «outro lado da serra». Não o será, porém, se pensarmos que o primeiro ritual do cascalense é abrir a janela, pela manhã, e perguntar à serra o tempo que vai fazer pela jornada. Habituámo-nos, desde pequeninos, a ‘ler os seus sinais’; a saber, por exemplo, que «barrão» é sintoma de vendaval à tardinha.
            Era Cascais dependente de Sintra até ao momento em que el-rei D. Pedro, ouvindo os rogos dos homens-bons da vila, houve por bem ‘libertá-los’ desse jugo, para que tivessem ‘jurisdição por si’. Interessava ao rei essa autonomia, equivalente a mais um arrecadar de impostos; interessava essa liberdade aos cascalenses, mais virados para as fainas marítimas do que às produções agrárias sintrenses. Estava-se em 1364; mas a autonomia só se tornaria efectiva uns anos mais tarde, quando D. Fernando cedeu Cascais a Gomes Lourenço do Avelar, com prerrogativas de governo.
            Quer-me parecer, no entanto, que esse costume de olhar, pela manhã, para o dorso majestoso da serra é capaz de se perder na noite dos tempos. «Monte da Lua» lhe chamariam os antigos; e não é que, entre o espólio da necrópole de Alapraia, datado de há uns 5000 anos atrás, se encontrou lúnula de calcário? Sim, é certo, também a Lua despertou desde sempre a curiosidade e o respeito do Homem, que bem cedo lhe prestou culto. Quiçá não seja, porém, mera coincidência a lúnula e o nome.
            E se as recentes escavações levadas a efeito na serra e a presença de dólmenes aqui e além no território sintrense – entre os quais avulta o chamado «Monge», em pleno cocuruto, entre os Capuchos e a Peninha – nos provam que há muito o Homem demandou estas paragens, é, contudo, do tempo dos Romanos que mais eloquentes são os testemunhos, consubstanciados, de modo especial, nos monumentos epigráficos que o Museu Arqueológico de S-. Miguel de Odrinhas mui ciosamente guarda e valoriza.
            Falam essas «pedras com letras» de três situações bem claras.
            A primeira é que rapidamente os Romanos souberam aproveitar as pedreiras próximas quer para as suas construções quer, de modo especial (e esses são os documentos maiores), para lavrarem as suas epígrafes.
            E nelas ficou gravado o culto generalizado que por estas bandas se prestava ao Sol e à Lua. Pudera! Quem resistiria à envolvente magia de contemplar o astro-rei a mergulhar no pélago imenso, que infinito para além se imaginava!... E as cores quentes desse pôr-do-sol, a cederem com dificuldade perante o luar que do outro lado despontava!... Não foram, todavia, fiéis anónimos, do povo, os que quiseram deixar imorredoiramente gravado na pedra o seu louvor! Foram os legados imperiais, dotados do mais amplo poder político. Foram os cavaleiros, no exercício das suas rendosas prefeituras administrativas! Seduz-nos a ideia de que – quais peregrinos – tão insignes dignitários marcassem entre os seus propósitos uma ida, pelo menos, a esta misteriosa plaga, onde, sem o deixarem escrito, como o deixaria muito mais tarde o Poeta, sentiam que «a terra se acaba e o mar começa»… Cardim Ribeiro não descansou enquanto não descobriu o sítio de que já Francisco da Holanda, em pleno século XVI, deixara esboço a mostrar altares em círculo num planalto sobre o mar. E lá estão os vestígios na foz do Rio de Colares e, ao que consta, também um texto em grego, a mostrar o precoce cosmopolitismo do sítio. Ontem, como hoje, a Sintra se acorre, para a gente se inebriar de Beleza!
            Exploração de pedreiras, dedicatórias a divindades e… epitáfios romanos, a dar conta de quem foram, afinal, os que por ali estanciaram, há mais de 2000 anos atrás. Um perfeito domínio do Latim; a adopção em pleno da tipologia dos monumentos funerários da Península Itálica; a interpenetração da onomástica pré-romana com os nomes latinos trazidos pelos colonos. Cidadãos romanos inscritos na tribo Galéria, a de Olisipo (a Lisboa romana), escravos, libertos, homens, mulheres…
            Odrinhas continuou florescente Idade Média afora e na villa romana se instalaram os primeiros povos pós-romanos, aí cavando sepulturas.
            Da presença árabe fala o eloquente castelo e os abundantes topónimos, alguns deles únicos na toponímia de Portugal.
            As veredas da Idade Média já portuguesa antevimos, quando se fez referência a Cascais. O Convento da Penha Longa; o conventinho que esteve na origem do enigmático, cenográfico e quase fantasmagórico Palácio da Pena; a aconchegada serenidade do convento dos Capuchos, num incessante convite à oração e à comunhão com o Além; o Paço da Vila e seus veraneantes segredos cortesãos – constituem marcos de uma palpitante história sempre vívida, séculos além… 
            Romântico era o sítio; românticos perdidamente por ela se haveriam de apaixonar: Lord Byron; Camilo e Eça, que não resistiram ao Mistério da Estrada de Sintra; aristocratas muitos que por ali ergueram mansões…
            De mistério se falou; de segredos bem guardados também. E aí está a Quinta da Regaleira, livro de pedra e de arte, a contar doutras histórias, doutras veredas, de um poço iniciático que leva a subterrâneos labirintos e donde, pé ante pé, se deve sair, atravessando o lago, pois tudo tem de se deixar para trás, purificado no ventre da terra-mãe!
            Sintra, terra-mãe – bonito ‘anagrama’ para uma fecunda história multissecular!

                NOTA: Síntese da comunicação apresentada, a 21-06-2013, no Palácio Valenças, em Sintra, a convite da entidade organizadora, a Associação de Defesa do Património de Sintra, no seminário Sintra Paisagem Cultural da Humanidade – Acessibilidades e Estacionamento. Foi inserida no dossiê subordinado a esse título, preparado por aquela Associação em Setembro de 2013, sem paginação.

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