quinta-feira, 21 de junho de 2018

Publicou a verdade e a Câmara mandou-o prender!

            O caso passou-se nos finais do século XIX e refere-se a um jornalista condenado a prisão no Limoeiro, por ter publicado que a Câmara Municipal de Lisboa não cumpria com as suas obrigações. Narra-o, na primeira pessoa, Faustino da Fonseca, jornalista republicano, director do jornal «Vanguarda», e vem no livro que escreveu, datado de 24 de Outubro de 1896, e que ora Fernanda Frazão, da editora Apenas Livros, achou por bem recuperar e dar a conhecer.
            Subscrevera a Câmara Municipal, com o donativo de 100 contos de réis, a colecta que, de pronto, a Nação Portuguesa lançara, a fim de se pagarem os navios em construção, por imperativo nacional, para lutar contra os Ingleses, que, pelo Ultimato, nos haviam espoliado do território do mapa cor-de-rosa, entre Angola e Moçambique. Pois aconteceu que o Município lisboeta foi engonhando, engonhando e resistia a pagar os 3.634$00 réis em falta. Aliás, quando lhe foi remetido o quarto ofício a solicitar o ressarcimento da dívida, «a Câmara, em vez de responder, resolveu solenemente, em sessão, mandar queimar o documento da comissão executiva da subscrição nacional e consignar essa resolução em acta» (p. 82).
            Imagina-se o sururu que isso levantou. Aliás, no decorrer da audiência, o Dr. Leão d’Oliveira não hesitou em responder ao juiz:
            «A Câmara podia e devia pagar, pois tem sempre ostentado riqueza por toda a parte, indo às festas henriquinas, dando lautos banquetes, gastando inutilmente à larga quantias que davam para cobrir aquela dívida» (p. 87).
            O certo é que o poder político conseguiu o que pretendia («O governo quer dependente do executivo o poder judicial», escreve-se na p. 97) e Faustino da Fonseca cumpriu na cadeia do Limoeiro «três meses de prisão correccional, desde 7 de Agosto a 6 de Novembro» de 1896, com apenas 25 anos de idade.

Um eloquente documento
            O interesse do livro não reside somente no facto de miudamente nos relatar a história do processo com tudo o que ele envolveu como testemunho das dificuldades por que passava a Imprensa livre, quando decidia criticar instituições que se criam e queriam impolutas; é que, até para ocupar os tempos livres, o prisioneiro aproveitou o ensejo para nos fornecer um relato vivido do mundo das prisões nessa segunda metade do século XIX. Um testemunho rigoroso a ter em conta para a história política, económica e social desse período, inclusive por não se ter coibido de relatar casos conhecidos, dando os nomes dos personagens com eles relacionados.
            Não se ousará afirmar que, mais de um século passado, o panorama poderá não ter mudado muito. Exagero seria, naturalmente. Há, porém, uma passagem que não resisto a transcrever:
            «O velho criminoso é mais considerado pela população das cadeias do que o gatuno novato e inexperiente.
            Contam-se as grandes façanhas do crime, descrevem-se os roubos, narram-se os assaltos, pormenorizam-se as burlas, apontam-se as hábeis escamoteações com o orgulho com que o militar fala das acções guerreiras em que se cobriu de glória».
            Para concluir:
            «O Limoeiro é uma verdadeira universidade do crime» (p. 36).

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 239, 2018-06-20, p. 6.

1 comentário:

  1. Paula Caetano
    Esta história assenta que nem uma luva na realidade que estou a viver de momento! A mim não me mandam prender porque não podem, no entanto vão me fazendo autos de fé!

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