Naquela manhã,
surpreendi-me. Abri a janela, a fim de, em acção de graças, saudar o alvorecer.
Na altíssima araucária do jardim vizinho poisava um bando de rolas. Bem lá nos
ramos do cimo, serenas, como que também elas agradeciam ter um poleiro assim,
altaneiro e tranquilo, nesse dia sem uma aragem sequer.
Gosto de as contemplar,
as araucárias. Há uma de cada lado, em jardins diferentes, como que a ladearem
o meu ângulo de visão para o dorso verde-escuro da serra de Sintra. Aquela sensação
de termos os pés em terra e a vista que se espraia e se eleva. No sossego da
aurora, as luzes acabaram de apagar-se, os carros ainda não deram em mostrar-se
sôfregos na pressa de quem nem tempo teve de saborear o pequeno-almoço e já se
apoquenta com não chegar atrasado. Ainda não. A correria só daqui a minutos
chegará.
Fui educado a
ter, pela manhã de cada dia, esse tempo de contemplação interior, a projectar
as horas seguintes; mas também a contemplação do exterior enriquece. Um olhar de
ver, o sabor inusitado de nos sentarmos no corredor de uma grande superfície. O
mundo à nossa volta e nós a saborear os momentos, a sentir a pulsação das
veias, a dominar a respiração e, até, a dar caminho ao pensamento, não o
deixando por i à rédea solta, que esse mundo traz mensagens a reter…
Os rostos, os trajos,
as tatuagens. Saltam estas à vista no pouco ou no muito que os corpos deixam
ver. Nos braços, nas pernas, nos peitos, em marota sedução, por vezes. A
deixar-nos brejeiramente sonhadores: se é assim o que está à mostra… E, de
repente, aquela recordação dos anos 60 e 70, as primeiras tatuagens, as dos soldados
do Ultramar: «amor de mãe», «batalhão X», «Nambuangongo 1961»… Cada tatuagem,
uma história, um desejo, uma mensagem. A mensagem que se pretende transmitir e
a que os outros imaginam.
E as
expressões faciais. Ali, um rosto descontraído e feliz; acolá, um carrancudo a
carregar, qual Atlas gigante, o peso todo do mundo! O passo apressado ou de
lazer. As roupas – sempre acredito que os senhores da moda jamais vão ter mãos
a medir nem a imaginação alguma vez lhes dará tréguas. Para conforto de quem
veste, para sadio entretenimento de quem pode ver. Na lembrança daquela frase à
entrada do Alhambra: «Dai-me uma esmola, senhora! Que nada há mais triste no Mundo do que ser cego em Granada!».
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 840, 15-03-2023, p. 10.
Dale limosna mujer,
ResponderEliminarque no hay en la vida nada
como la pena de ser
ciego en Granada.
Francisco A. de Icaza
Grato pela referência original!
EliminarDevaneios contemplativos inspirados em vida longa, de observador atento e sensível ao tempo e modo do mundo d’ontem e d’hoje!!!
ResponderEliminarParabéns pela excelente reflexão!
César Correia 16 de março de 2023 15:31
ResponderEliminar... contemplei o "Contemplar" e gostei. Muito bom!
Obg.
Interessante texto rematado pelo poema do mexicano-espanhol, com nome de rua de Madrid e em Granada, onde a sua aristocrática e jovem esposa crescera. Para ver, é preciso tempo para olhar com calma...
ResponderEliminarBelo texto, meu amigo. Eu tenho uma araucária no jardim... mas sinto-me miseravelmente cega em Granada. Beijo grande
ResponderEliminarDe Regina, 17/03/23 12:37
ResponderEliminarMuito obrigado pela partilha. Um belo texto que, mesmo parecendo “superficial", encerra um conteúdo bem profundo. Leva o leitor a meditar.