Não baixamos os braços, nós, os defensores da língua
portuguesa. Diariamente pugnamos contra a avassaladora invasão de termos
estrangeiros, aceites amiúde sob o pretexto de que melhor exprimem o que se
pretende dizer.
Sim,
é difícil resistir, por exemplo, ao uso da palavra email, em vez de ‘correio
electrónico’. E até já sabemos: pronuncia-se ‘imeil’ – e toda a gente
compreende. Aceita-se, aqui, a derrota. Contudo, novas e aguerridas frentes de
batalha se abrem.
Assim,
João Lourenço Roque, refugiado no lugar de Calvos da remota freguesia beirã de
Sarzedas, não tem hesitado dar a conhecer nas suas crónicas (publicadas depois
em livro sob o título de «Digressões Interiores») termos e expressões da
«linguagem à moda antiga»: estraboucher = rebolar com dores e espasmos, «prendi
o burro a uma estaca, mas ele comido com moscardos tanto estrafouchou que partiu
o cabresto, largou os atafais e abalou desinfriado ós fanicos lombas acima…».
A
propósito da fotografia dos cestos à venda na feira, escreve Alberto Correia
(«Ruralidades» 2023, p. 35): «E o cesteiro que logo de manhã se senta no seu banco
armado com o ferro de lavrar no preparo das corras, as delgadas tiras de
madeira de castanho, de mimosa, de sanguinho ou os vimes do ribeiro»… Quem há
aí que use no quotidiano essas palavras?
Maria
Mícaela Soares, etnóloga que fez a sua vida na Assembleia Distrital de Lisboa e
percorreu, por isso, todo o distrito, mormente a região saloia, legou-nos o
livro «Glossário de Linguagem Popular – Apontamentos», volume de quase 400
páginas, agora postumamente editado pela Câmara Municipal de Cascais. Esse
longo e mui atento contacto com o povo, por um lado, e, por outro, a miúda
leitura dos nossos clássicos, sobretudo aqueles que à linguagem dedicaram
largas páginas, deu-lhe azo a compendiar centenas de expressões que, essas sim,
fazem parte do nosso quotidiano e são, por isso, inacessíveis aos estrangeiros
e, cada vez menos, às gentes da cidade embalsamadas em vocábulos da estranja: «esticar
o pernil», «essa nem lembrava ao diabo», «daí, menino, eu lavo as minhas mãos»,
«pareces, homem, uma tábua de engomar», «ah! esses, cuidado com eles, fazem mão
baixa de tudo, chiça, penico, chapéu de coco!»…
Dar
baixa devíamos nós das palavras inglesas que grassam como peste malina e pôr em
alta, ao invés, os termos que nosso falar tanto enobrece.
José d'Encarnação
Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 862, 1/4/2024, p. 10.
Ana Teresa
ResponderEliminarOlhe, Professor, a começar pela Câmara Municipal de Cascais (pelo menos). É uma vergonha. Qualquer coisa que digam é preciso ir buscar o dicionário de inglês, tal a profusão de termos que utilizam em tudo e para tudo. Uma ofensa mesmo
Concordo com a Ana Teresa
EliminarMaria Helena
O "estraboucher"...Beira Baixa, bem me parecia! Esse fenómeno de nasalar as vogais e os ditongos fez-me passar situações caricatas.
ResponderEliminarNão entendia nada e pensava que estava num país estrangeiro.
Uma vez num quintal com uma bela romãzeira, pedi umas romãs...
Ah, quer umas marguêdas?
Não, quero romãs
Poi... aqui são marguêdas.
Soube mais tarde que "poi" era a palavra correta para eles. Pois, fazia rir a malta...
Tive que ir passar férias para outros lados, senão, com tanto termo vernáculo (se eu dissesse) ainda teria de repetir a expressão chiça penico, que já ouvira há muitos anos.
Falaram-me dela a propósito de uma história no centro medieval de Coimbra... Uma noite certas senhoras resolviam ir à taberna em busca dos homens delas. Todas as noites lá caídos? Hummmm!
E lá chegaram. Viram-nos a jogar cartas, a beber cálices de vinho doce e muito sorridentes perguntavam: " atão Maria, atão Joseja...sentem-se aí e bebam um cálix desta jorpiga"
E elas beberam...gostaram tanto da animação da jeropiga, que repetiram, dizendo umas para as outras : "rai partissa...chiça penico, coisa tã boa bebem os homes".
E passaram a ir aos pares.
Este país, e alguns textos deste blogue, são uma delícia de vernaculidade.