quinta-feira, 4 de abril de 2024

Os nossos termos vernáculos

             Não baixamos os braços, nós, os defensores da língua portuguesa. Diariamente pugnamos contra a avassaladora invasão de termos estrangeiros, aceites amiúde sob o pretexto de que melhor exprimem o que se pretende dizer.
            Sim, é difícil resistir, por exemplo, ao uso da palavra email, em vez de ‘correio electrónico’. E até já sabemos: pronuncia-se ‘imeil’ – e toda a gente compreende. Aceita-se, aqui, a derrota. Contudo, novas e aguerridas frentes de batalha se abrem.
            Assim, João Lourenço Roque, refugiado no lugar de Calvos da remota freguesia beirã de Sarzedas, não tem hesitado dar a conhecer nas suas crónicas (publicadas depois em livro sob o título de «Digressões Interiores») termos e expressões da «linguagem à moda antiga»: estraboucher = rebolar com dores e espasmos, «prendi o burro a uma estaca, mas ele comido com moscardos tanto estrafouchou que partiu o cabresto, largou os atafais e abalou desinfriado ós fanicos lombas acima…».

            A propósito da fotografia dos cestos à venda na feira, escreve Alberto Correia («Ruralidades» 2023, p. 35): «E o cesteiro que logo de manhã se senta no seu banco armado com o ferro de lavrar no preparo das corras, as delgadas tiras de madeira de castanho, de mimosa, de sanguinho ou os vimes do ribeiro»… Quem há aí que use no quotidiano essas palavras?
            Maria Mícaela Soares, etnóloga que fez a sua vida na Assembleia Distrital de Lisboa e percorreu, por isso, todo o distrito, mormente a região saloia, legou-nos o livro «Glossário de Linguagem Popular – Apontamentos», volume de quase 400 páginas, agora postumamente editado pela Câmara Municipal de Cascais. Esse longo e mui atento contacto com o povo, por um lado, e, por outro, a miúda leitura dos nossos clássicos, sobretudo aqueles que à linguagem dedicaram largas páginas, deu-lhe azo a compendiar centenas de expressões que, essas sim, fazem parte do nosso quotidiano e são, por isso, inacessíveis aos estrangeiros e, cada vez menos, às gentes da cidade embalsamadas em vocábulos da estranja: «esticar o pernil», «essa nem lembrava ao diabo», «daí, menino, eu lavo as minhas mãos», «pareces, homem, uma tábua de engomar», «ah! esses, cuidado com eles, fazem mão baixa de tudo, chiça, penico, chapéu de coco!»…
            Dar baixa devíamos nós das palavras inglesas que grassam como peste malina e pôr em alta, ao invés, os termos que nosso falar tanto enobrece.
 
                                                                José d'Encarnação

            Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 862, 1/4/2024, p. 10.

3 comentários:

  1. Ana Teresa
    Olhe, Professor, a começar pela Câmara Municipal de Cascais (pelo menos). É uma vergonha. Qualquer coisa que digam é preciso ir buscar o dicionário de inglês, tal a profusão de termos que utilizam em tudo e para tudo. Uma ofensa mesmo

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  2. O "estraboucher"...Beira Baixa, bem me parecia! Esse fenómeno de nasalar as vogais e os ditongos fez-me passar situações caricatas.
    Não entendia nada e pensava que estava num país estrangeiro.
    Uma vez num quintal com uma bela romãzeira, pedi umas romãs...
    Ah, quer umas marguêdas?
    Não, quero romãs
    Poi... aqui são marguêdas.
    Soube mais tarde que "poi" era a palavra correta para eles. Pois, fazia rir a malta...
    Tive que ir passar férias para outros lados, senão, com tanto termo vernáculo (se eu dissesse) ainda teria de repetir a expressão chiça penico, que já ouvira há muitos anos.
    Falaram-me dela a propósito de uma história no centro medieval de Coimbra... Uma noite certas senhoras resolviam ir à taberna em busca dos homens delas. Todas as noites lá caídos? Hummmm!
    E lá chegaram. Viram-nos a jogar cartas, a beber cálices de vinho doce e muito sorridentes perguntavam: " atão Maria, atão Joseja...sentem-se aí e bebam um cálix desta jorpiga"
    E elas beberam...gostaram tanto da animação da jeropiga, que repetiram, dizendo umas para as outras : "rai partissa...chiça penico, coisa tã boa bebem os homes".
    E passaram a ir aos pares.
    Este país, e alguns textos deste blogue, são uma delícia de vernaculidade.

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