quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Um Fernando Pessoa traído!

               Um dia, deu-me na veneta mostrar aos alunos a folha de rascunho dum texto. Escrito a lápis, pejado de siglas e de abreviaturas, com intervalo grande entre cada uma das linhas para aí poder intercalar frase ou palavra surgida à última hora, e largas margens, tudo gatafunhado nas costas duma folha A4 já escrita dum lado, para poupar papel. Tenho resmas dessas folhas, que vou recebendo só impressas dum lado. Um hábito que me ficou do Jornal da Costa do Sol, cujos redactores as tinham ao seu dispor, da publicidade e das informações à imprensa.
            Longe de mim comparar-me a Fernando Pessoa ou a qualquer outro escritor; contudo, lembrei-me desse hábito quando, a 25 de Julho, ouvi a indignada Professora Teresa Rita Lopes, conhecida investigadora da obra de Fernando Pessoa, bramar contra a chamada Equipa Pessoa, que se aplicou a «reescrever o texto pessoano, alterando-o sistematicamente com a inclusão das “variantes”, alternativa à palavra, ao verso ou à frase que Pessoa tinha o hábito de acrescentar, às vezes seguidamente, no momento da escrita, outras quando o relia, em cima, em baixo, na margem».
            Foi por isso que me lembrei da folha de rascunho. Também aí se cortavam palavras e se substituíam por outras ou se escrevia uma diferente ao lado a ver se dava melhor…
            O que Teresa Rita Lopes critica é o facto de a tal Equipa Pessoa ter dado mais atenção às variantes do que ao texto, sem fazer caso de que algo poderia não estar bem, nessa hesitação pessoana, porque de hesitação se tratava, de hipótese a considerar, como num rascunho. Textos fixados a partir dos manuscritos que o Poeta deixou. E a Professora deu como exemplo os dois últimos versos do poema XV de Alberto Caeiro: «E são a paisagem da minha alma de noite, / A mesma ao contrário». Na versão da Equipa vem assim: «E são o campo da minha maneira de noite, / O mesmo e mais a noite». Algo há aqui a não soar bem, de facto. E o problema está em que, depois, não só se fazem análises de versos assim estropiados como essas versões erradas se vão disseminando…
            Tenho a edição dos «Poemas de Alberto Caeiro» organizada por António Quadros – que datou a introdução «Cascais, Junho de 1985» – para a colecção de Livros de Bolso de Publicações Europa-América (nº 439) e já então António Quadros escrevia:
            «Surgem por vezes variantes, em muitas poesias, quer por haver mais do que uma leitura possível da mesma palavra, quer por haver discrepâncias entre várias edições.
            «Por nossa parte, utilizámos simplesmente as versões mais plausíveis, sem a preocupação de dar, em rodapé ou em apêndice, todas as variantes possíveis». (p,. 92).
            Há, pois, que ter todo o cuidado ao estudar Pessoa, desconfiando sempre que algo nos pareça não soar inteiramente bem. Essa, a primeira conclusão. A segunda: cá está mais um exemplo palpável de como a escrita não flui, inclusive nos autores consagrados, qual límpida corrente, sem obstáculos, serena e descuidada. Não. Requer suor. Dantes, dactilografava-se uma página e éramos capazes de a rasgar depois; agora, o computador facilita-nos a vida, mas muito avanço e recuo há sempre a fazer!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 301, 2019-10-16, p. 6. 

 

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