sexta-feira, 15 de maio de 2020

A estrela da tarde


             Acho que nunca a vira assim.
            Pelas onze da noite, num céu limpidamente acinzentado, quase a descer o horizonte. Segundo a minha orientação, está a oés-noroeste. Ou a noroeste, talvez.
             Encanta-me o seu brilho enorme.
            Nunca a vira assim, tão brilhante, a desafiar as estrelas verdadeiras, ela que, apesar de ser (agora) a «estrela da tarde» e, no Inverno, a «estrela da manhã», não passa de bonito planeta. Vénus. Compreendo, finalmente, porque é que os Antigos lhe deram esse nome de deusa do Amor, sempre supostamente a mais linda das deusas.
            Lembro-me de pequeno, do alto do Cerrito, no Barrocal algarvio, minha avó me dizer:
            – É a estrela da tarde. A primeira que se vê quase ao sol-pôr. No Inverno, é a única que continua brilhante antes de o Sol romper.
            Sempre me fascinou.
            E dou comigo a deixar-me fascinar de novo. Agora, no crepúsculo da vida.
            Tudo por via de um ser (ele é um «ser»?...) que, enigmático, sorrateiro, maligno, feroz, implacável, obrigou os habitantes humanos do planeta Terra a parar, a deixarem ver o céu estrelado, sem fumos poluidores. E a reaprenderem tantas coisas de que, na imparável velocidade dos seus dias, haviam desaprendido: que havia estrelas, planetas; a Lua tinha fases e todas as noites se podia apreciar um bocadinho mais da sua superfície quando o quarto era crescente…
            E que uma aldeia – como escreveu um poeta (tinha de ser!) – pode sonhar alto, mediante o entrecortado ladrar dos seus cães, ou deixar-se embalar pelo compassado grigri dos ralos e dos grilos…
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 776, 12-05-2020, p. 12.

3 comentários:

  1. Um dos mais bonitos retalhos de prosa que tenho lido nos últimos tempos. Além de bem escrito, está cheio de uma sensibilidade tocante que apela à contemplação das belezas que povoam o Universo

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  2. Maria de Jesus Brito
    Linda a estrela de tarde ou da manhã, conforme a estação. Também eu costumo olhar para ela e fico deslumbrada com a sua beleza. O entardecer é o momento que mais gosto do dia. O amanhecer também é bonito, mas poucas vezes tenho oportunidade de o admirar....

    Cristina GF
    Lindo !!!!
    Por aqui também passeia essa estrela com toda a entourage a que tem direito... ☺

    Marta Barata
    Um encantamento que me faz estar lá. Muito bonito

    Edgar Valdez
    Não reparei!! Vou estar mais atento um dia destes!
    Obgº

    Joaquim Almeida
    Melancolia do sol-pôr ... Num bilhete tão belo !

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    1. Tomei a liberdade de 'roubar' do FB para aqui estes comentários amigos, que muito agradeço. Consola!

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