terça-feira, 19 de maio de 2020

Silêncios...


            A muitos terá acontecido o mesmo. O silêncio a envolver-nos, em Março e Abril, determinou retorno à infância.
            De casa de minha avó, no Cerrito, eu ouvia chocalhos de cabras no caminho, a guizalhada do macho e, até, a falta de unto nos rodados da carroça… Ecoava pelo ar a buzina do Ti Zé Lòsinho, recém-chegado da lota de Olhão. Bradava-se pela Ti Marquinhas, cuja casa ficava na colina que é o núcleo central do sítio do Corotelo, e ela ouvia e nós ouvíamo-la a ela. Automóvel que passasse – e era raro passar! – a gente identificava-lhe o som. Era bem perceptível o zumbido do besouro em volta dos vasos de flores…
            Eu dormia a sesta no sobrado, com tecto de canas. Adormecia ao som do que minha avó chamava as costureiras. Nunca vim a saber o que eram; mas tinham mesmo o jeito de serem mulheres a coser à máquina, a espaços. Não me assustava, mas tentava imaginar como seriam, se grandes, que estavam a fazer, se roeriam as canas… Adormecia! Esse matraquear compassado tenho-o bem presente na memória. Tantos anos passaram!...
            O silêncio que, por força do vírus, nos envolveu teve esse condão mágico de novamente me sentir menino…
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 282, 20-04-2020, p. 13.

O núcleo central do Corotelo, visto do Cerrito, a casa de meus avós

8 comentários:

  1. De: Sofia Silva, 19 de Maio de 2020 12:30
    Grata pela partilha!
    Gostei muito!
    Adoro essas partilhas de memórias que parecem simples do quotidiano das nossas infâncias mas que têm significado maior e nos permitem refletir a atualidade.

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  2. Que linda memória que o silêncio fez evocar, José. Até eu ouvi os chocalhos, a guizalhada dos machos, a buzina, os brados, o ruído do automóvel. E de um texto tão bonito, ficou-me ainda a imagem de um menino deitado no sobrado, e o zumbido dos besouros, lá fora, a namorarem as flores. Bem hjas.

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  3. De: vitor barros terça-feira, 19 de Maio de 2020 12:44
    Muito bom esse voltar à infância. Eu de vez em quando faço o mesmo e também vou dormir com o meu avô... vou à escola, à sociedade e espero pelo Zé Lozinho para falarmos de bola. E, claro, o Lázaro com a sua boina!

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  4. De: Vanda Maria Amaro Jardim Fernandes terça-feira, 19 de Maio de 2020 16:38

    Lindo! Comovente! Sereno! Bucólico!
    Abraço de bons silêncios, com muita saúde!

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  5. Obrigada por me relembrar a minha infância! Lembro-me também da Ti Marquinhas, quem não se lembra. O som da máquina de coser dizia-se que era a costureirinha da sé... Beijinhos ;)

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  6. Helena Ventura Pereira
    19 de maio às 14:46

    Este Silêncios é um texto tão bonito que vale a pena ler. E ainda por cima é breve, intenso, diz muito em poucas palavras. Gostei tanto!

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  7. Pois, também eu me lembro da costureira! Nessa altura aparecia muitas vezes. As pessoas tinham-lhe um certo temor. Que era uma alma do outro mundo, diziam! Peso que seria algum bichinho a roer as canas que compunham os telhados algarvios, muito comuns outrora. Sobretudo nas casas mais modestas. Outros tempos1 Outros silêncios!

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  8. Mina Rodrigues, 20 de Maio de 2020, às 14.53

    No jornal da nossa bonita terra li a sua crónica "Silêncios". Adorei, porque me revi nela. Conheci todas essas cenas e pessoas. BEM HAJA!

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