Acordei
hoje com uma pergunta bem estranha: «É o próximo um meu inimigo?».
A
palavra soa-me desde menino: «Amar o próximo como a si mesmo». O primeiro
mandamento. Próximo, aprendi logo, é o membro da família, o vizinho, aquele com
que te cruzas na rua, o que passa por ti orgulhoso do seu descapotável e o
idoso que comprou um daqueles carros com motor de motociclo…
Já
não te cruzas. A preocupação de quem vem lá, mesmo que tenhas máscara, é passar
para a outra berma, não vás infectá-lo com o vírus.
E
revivi o que fora o dia da passada semana, em que – sabe-se lá porquê, devido
quiçá à minha costela marota do Barrocal algarvio – acordei doutra forma, com
uma vontade enorme de ser próximo. Uma vontade irresistível, que vinha de
dentro, das minhas vísceras septuagenárias. Instintivamente, talvez.
Assim,
na (já rotineira) ida para o hospital, cruzei-me com uma jovem. Levava uma
criança ao peito, empurrava o carrinho com outra:
–
Grande carrego, vizinha, grande carrego!
–
É verdade. Bom dia!
No
murete antes da entrada, a menina, aí duns três anos, dava miminhos à mãe, que
lhe ajeitava o casaquinho.
–
Que narigada boa, hein?
Riram-se.
Eu sorri também.
À
entrada, a auxiliar apontou-me o termómetro à testa, séria, nas perguntas
regulamentares: «Febre? Tosse? Má disposição?». Respondi maquinalmente: «Tudo
bem». «E o que vem fazer?». «Fisioterapia e… ver uns olhos bonitos!». Era
verdade. A senhora sorriu, agradeceu, sorrimos ambos. Desinfectei as mãos.
Na
sala de espera, estava a ser difícil pôr a máscara na pequenita, ansiosa porque
ia ao senhor doutor dentista. «Que máscara bonita a tua!», disse-lhe eu. A mãe
sorriu, a menina encolheu-se num requebro doce perante a frase inesperada. A
máscara foi ao lugar num ápice.
Mais
adiante, atmosfera pesada, antecâmara para os tratamentos. O senhor, de
canadianas sobre as pernas, mirava, pensativo, o telemóvel, rugas na testa,
ânsia no rosto, a perna esticada.
–
Olá, bom dia!
Levantou
os olhos admirados, ainda ninguém mais lhe dissera «bom dia!»; num quase
sorriso, respondeu «bom dia!»…
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 798, 01-05-2021, p. 11.
Gestos tão simples e que fazem tanta diferença...
ResponderEliminarO que acho delicioso neste texto, é que ele traduz a personalidade do autor (com "uma costela marota do Barrocal algarvio"?). Ele tem sempre vontade de ser próximo, como se gostasse de lançar um desafiozinho aos antipáticos que encontra, ou melhor, aos menos risonhos e desconfiados. E a sua maneira de ser prova isso mesmo, que não há antipáticos, há distraídos do melhor da vida, ou desiludidos por ninguém dar por eles. Uma lição de vida.
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