Procede
de Pias, no concelho de Serpa, uma placa de mármore, guardada no Museu Nacional
de Arqueologia, de Lisboa. Foi dada a conhecer já em 1940, mas não se lhe terá
dado até agora a devida importância, atendendo à singularidade do epitáfio que ostenta.
Fig. 1 |
Estava fragmentada em três; uma das
partes perdeu-se, mas, devido a ter sido estudada completa (ver fig. 1), não ofereceu problemas
de leitura o seu letreiro, redigido, como habitualmente, em língua latina:
Apolausis | Antistiae Pr|iscae delici|um Annicia | dierum XXXXVIII | h(ic) s(ita) e(st) s(it) t(ibi) t(erra) l(evis).
Antes, porém, de apresentarmos a tradução,
cumpre assinalar os aspectos que tornam singular este monumento epigráfico (fig. 2).
Fig. 2 |
Depois, não
parece normal que se diga ter a criança morrido com 48 dias; o normal seria
indicar meses e dias. Essa divisão em meses não foi, todavia, adoptada e essa
opção detém particular significado:
contaram-se os dias e foram poucos… A carga de ternura familiar aqui patente
não poderia deixar de comover o passante.
O nome Prisca
– e este é o 3º aspecto – é bem conhecido e, na placa, que se destinava a ser colocada
na face dianteira do gavetão onde o corpo da menina foi depositado, o que se lê
é PPisca!
Que pode
concluir-se daqui? Que, como de vez em quando acontece, o canteiro encarregado
de gravar o letreiro não compreendeu cabalmente o que vinha escrito na minuta que
lhe apresentaram e… cometeu erros!
O caso de Ppisca
em vez de Prisca não causou problemas, porque de imediato se
compreendeu ter havido um lapso. Já a palavra Annicia se não entendeu
logo muito bem e se optou por considerar, como se disse, o segundo nome da defunta,
até que um dos investigadores, apercebendo-se das outras anomalias ortográficas,
apontou mais uma para aqui: o que estava na minuta era annicla (o
correcto seria annicula) e não Annicia! Não era um I mas sim um L
e isso mudava por completo o entendimento do texto, porque annicula, com
minúscula, é um adjectivo e não um substantivo próprio e quer dizer «de um ano»!
Ou seja: a menina Apolausis morrera com um ano e 48 dias!
Estamos, desta
sorte, em condições de dar agora a tradução do epitáfio:
«Aqui jaz Apolausis, delícia de Antístia Prisca, de um ano e 48 dias. Que a terra te seja leve».
Os estudiosos
chamaram ainda a atenção para dois outros aspectos que tornam esse monumento
deveras especial:
1º) O nome
dado à menina é etimologicamente grego: deriva de um substantivo que significa “delícia”,
o que sugere estarmos em presença de um ambiente de escravos, porquanto, nessa
época, ter nome grego era, amiúde, sintoma de origem servil, pois os senhores gostavam
de dar aos seus escravos nomes bonitos, e escolhiam-nos no vocabulário grego,
até para darem uma ideia de serem pessoas eruditas!
O 2º aspecto é
ainda mais curioso: não bastou à senhora dar à pequenina escrava o nome de Apolausis,
com o significado de ‘delícia’, como se viu: especificou o relacionamento que tinha
com a defunta, que fora a sua ‘delícia’, usando agora uma palavra latina – delicium!
Um jogo de palavras que manifesta, sem dúvida, elevado grau de cultura por
parte desta família romana.
Cumpre acrescentar
que, no conjunto das inscrições romanas conhecidas até ao momento, da palavra delicium se registam perto de 200
testemunhos, qualificando primordialmente crianças ou jovens prematuramente
falecidos. Todavia, no âmbito do território hoje português, é este o único
registo.
Sim, já
sabemos que Apolausis constituía as delícias de Antístia Prisca. Desconhece-se,
contudo, qual o grau de parentesco entre as duas. Senhora e escrava, como se
disse? Poderia ter sido, contudo, a mãe (natural ou adoptiva) e a ausência de
menção explícita a essa maternidade justificar-se-ia
pela dor imensa causada por esta morte prematura.
Concluir-se-á,
pois, que esta placa, apesar da sua simplicidade, pode ser considerada sintoma
de um grau de cultura incompatível com gentes autóctones, pelo que Antístia Prisca
pode ter vindo da Península Itálica, entre os primeiros colonizadores romanos da
região.
Encontra-se
a placa no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, como se anotou. Ocorrerá,
pois, perguntar: ¿dada a sua singularidade, não seria de se propor a execução
de uma cópia da lápide completa para figurar no Museu Municipal de Serpa?
Essa
não é, hoje, tarefa nem difícil nem dispendiosa e a possibilidade de, em devido
tempo, ser considerada «a peça do mês» no Museu sempre constituiria um pretexto
mais para a população se consciencializar da importância que tem a salvaguarda
destas pedras com letras, por mais insignificantes que pareçam.
José d’Encarnação
Publicado no Diário do Alentejo (Beja), 8 de Janeiro de 2021.
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