quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Se a Senhora das Mercês nos dá uma mercê!...

            Existe no lugar da Alagoa (Moimenta da Beira), a pouco mais de 200 metros a nor-noroeste da igreja paroquial de São João Baptista, a capela de Nossa Senhora das Mercês, de estilo pombalino.
            Esta capela é a primeira das sete que vêm mencionadas na Memória Paroquial de Moimenta da Beira, que é a resposta do pároco da vila de Moimenta da Beira, Francisco Gonçalves, datada de Maio de 1758, ao questionário enviado pela Coroa. Aliás, Bento da Guia – que a considera edificada sobre as ruínas de uma anterior — relaciona-a, de uma forma assaz curiosa, com duas delas, a de S. Sebastião e a da Senhora do Amparo. Segundo ele, tudo estaria ligado: S. Sebastião equivalia ao «acabar de todas as guerras»; a Senhora das Mercês, «a libertação de todos os cativeiros»; e a da Senhora do Amparo, «a misericórdia vigilante para todas as carências» (As vinte freguesias de Moimenta da Beira, 3.ª ed. Viseu, 2001, p. 278). Aí também se informa (p. 328) que, na sequência de promessa feita a 20 de Abril de 1649, por ocasião da praga de lagartas que destruía os soitos, a essa capela, entre outras, se cumpria romagem anual.
            Encastrada na fachada posterior da capela, ao centro, em plano superior, voltada a noroeste, mostra-se uma edícula, de granito de grão médio, com 57 cm de altura por 38 de largura. Tem a encimá-la frontão triangular flanqueado por pináculos encimados por esferas. A superfície central, lisa, sem vestígio de ter sido pintada ou de haver levada algum escrito, é ocupada por uma tarja pentagonal, rebaixada, limitada por moldura em filete, que termina em volutas, uma de cada lado, a envolverem, de certo modo, a inscrição em duas linhas na base.
O P inicial desse letreiro lê-se bem e está seguido de um ponto. Vem depois o que parece ser D (há uma racha na pedra nesse local) com um S deitado; no final, M com ponto a indicar que deve entender-se como sigla. A linha seguinte, entre as volutas em relevo, mostra a data que interpretamos como 1756: o 7 com breve barra horizontal superior; o 5 gravado quase como S, como era hábito no século XVIII, embora não esteja inteiramente perceptível; o 6 é claro. Uma data que se aceita bem, porque pode resultar de reedificação ou restauro levado a efeito logo após o terramoto de 1755.
E para que imploramos o auxílio da Senhora?
Primeiro, porque – se DAS M(ercês) até se nos afigurava normal estar escrito na placa, como que para identificar o edifício (ainda que seja estranho estar na sua parede posterior) – para o P inicial não encontramos, de momento, solução de desdobramento.
Depois, porque o Padre António Francisco d'Andrade, ao referir-se a esta capela no seu livro Descripção e Historia do Concelho de Moimenta da Beira (Viseu, 1926, p. 31), diz que há, na sua «parede da retaguarda, numa lápide parietal, a data de 1164».
É, pois, verosímil, que a lápide actual tenha substituído a anterior, ainda que nos cause confusão como é que, escrevendo em 1926, o Padre Andrade se haja referido à inscrição do século XII e não a esta, do século XVIII, na medida em que essa substituição poderá ser explicada, como atrás se disse, pelo facto de ter havido destruição aquando do terramoto. Contudo, destruição não houve, porque teria sido notícia que o prior Francisco Gonçalves não teria deixado de relatar, no quesito expressamente a isso dedicado, o nº 26: «Se padeceu alguma ruína no terramoto de 1755 e em quê e se está já reparada»; e, nesse aspecto, ele é peremptório: «não padeceu ruína alguma» (Memorias Paroquiais – Arquivo Nacional da Torre do Tombo - vol. 25, nº 259, p. 1923).
Portanto, à Senhora das Mercês uma mercê ora se roga: se houve essa placa de 1164, a denunciar que aí existiu ermida dos primeiros tempos de Portugal, onde se poderá saber mais acerca dela? Que, Senhora, a Vossa ermida, assim, bem envolta anda em mistério!...
 
José Carlos Santos
José d'Encarnação

 Publicado em Terras do Demo [Moimenta da Beira], 19 de Agosto de 2021, p. 6.

1 comentário:

  1. Um texto fabuloso que me deu muito gosto ler.
    É comovente perceber a devoção dos povos, desde tempos imemoriais, aos seus padroeiros, ou santos de confiança, aqui um trio com funções várias e complementares. E a construção das capelas...e a romagem a respeitar a tradição. E depois os termos magníficos usados em arquitectura e epigrafia : edícula, frontão, pináculo, tarja pentagonal, moldura em filete, ou as volutas que abraçam a inscrição. É ela, na acapela da Nossa Senhora das Mercês, o destaque. E não deixa de ser aliciante esse trabalho reflexivo para descobrir o passado, como se estivéssemos num policial, embora aqui, brandamente, se peça um milagre para que apareça a placa do século XII. Não será difícil, se as preces até acabam com pragas de lagartas...

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