No âmbito do
Mestrado
em Antropologia, apresentou a Dra. Elisa Maria Martins Alves, em 2019, ao
Departamento de Antropologia, Escola de Ciências Sociais e Humanas do Instituto
de Ciências Sociais e Humanas (Instituto Universitário de Lisboa) a dissertação
intitulada
Os Cardadores de Vale de Ílhavo
– A imagética na Patrimonialização das Festas.
Profusamente
ilustrada e fruto de uma vasta experiência adquirida no quadro do
acompanhamento de festas populares congéneres, a dissertação está disponível
em http://hdl.handle.net/10071/20563. Ao prepará-la,
pôs-me a seguinte questão:
Considera que a produção de imagens (fotos e vídeos) e a sua divulgação
pode ser um elemento de patrimonialização de uma festa de uma comunidade,
como a de um carnaval rural? E como? Transcrevo a seguir
a resposta que mui gostosamente dei e que a Dra. Elisa Martins Alves faz
questão de citar em várias passagens do seu trabalho e de a incluir na
totalidade nas p. 124-125. «Patrimonialização»
implica a consciência por parte de uma comunidade de que algo lhe pertence, é
seu património, entendendo-se que esta designação contém uma conotação
dinâmica, extensiva no tempo: ou já vem de tempos antigos, é legado, é herança
a preservar e acarinhar; ou o temos em tão elevada consideração, damos-lhe tanto
valor que diligenciamos no sentido de vir a ser transmitida intacta aos
vindouros, como património que nós próprios criámos.
Uma tradição,
um lugar, um edifício para serem ‘património’ carecem sempre duma
consciencialização. Só há pouco tempo se chegou à conclusão de que, por
exemplo, a culinária representava, em cada país ou mesmo em cada região, uma
peculiaridade que muito tinha a ver com as iguarias disponíveis no local e a
forma como os antepassados, de geração em geração, as foram preparando à sua maneira.
Não admira, por isso, que já Fialho de Almeida (1857-1911) tenha proclamado:
«Um povo que defende os seus pratos
nacionais defende o território. A invasão armada começa pela cozinha».
Não admira que
o Conselho de Ministros de
Portugal só em 26-7-2000 tenha aprovado a resolução
nº 96/2000 que «considera a gastronomia portuguesa como um bem imaterial
integrante do património cultural
de Portugal».
O tempo, factor
dominante para a «patrimonialização». Por conseguinte, é bem-vindo tudo o que
contribua para dar a uma população a noção de que o que mostra e concretiza – a
festa tradicional, o cortejo que já vem assim desde sempre, o manjar típico.. –
faz parte das suas tradições, merece ser tido como «Património».
Numa época em
que a imagem goza do enorme poder que se lhe reconhece, a fotografia e o vídeo (imagem
em movimento) detêm nesse processo uma relevância fundamental.
Primeiro,
porque permitem ao Homem, aos intervenientes verem-se, observarem-se, como que
estão de espectadores e, desta sorte, compreendem melhor, apreciam mais
facilmente o que é agradável de ver e preservar. Fazemos um vídeo, disparamos
uma fotografia e apressamo-nos a ver como ficou, queremos ver-nos «do lado de
lá»!...
Depois, tanto
a fotografia como o vídeo permitem captar o todo e o pormenor eloquente,
significativo; realçam os aspectos inovadores. E veja-se a quase obsessiva
utilização que hoje se faz do telemóvel na sua acepção de máquina fotográfica e
de nos facultar a possibilidade de fazer, com a maior das facilidades, o vídeo
do que nos interessa – a ponto de, amiúde, nos apercebermos que é cada vez
menos telemóvel e cada vez mais máquina para fotografias ou filmes!
Fotografamos
nós e fotografam os outros. O facto de vermos muitos estrangeiros a filmarem a
apresentação de um rancho folclórico agrada-nos, ficamos mais compenetrados de
que «aquilo», afinal, causa impressão, é digno de um filme e vai ser levado
para o Japão, para o Brasil, para a América, como recordação de uma cena típica…
São o vídeo e
a fotografia instrumentos dispensáveis no que concerne à elevação de algo a
património?
A resposta a
essa eventual dúvida é peremptoriamente: «Não!».
Constituem
elementos realmente indispensáveis, sem favor! Daí que, só para darmos um
exemplo, mesmo num museu (lugar onde, por excelência, se reuniram ‘patrimónios’…),
além do objecto que se mostra, não se prescinda já de apresentar, ao lado, o
vídeo que documenta aspectos mais salientes desse objecto, que uso tinha no
quotidiano das gentes, que interesse realmente despertava…
Cascais, 2 de Outubro de 2019
José d’Encarnação
A imagem, retirada da obra de Elisa Martins Alves, apresenta um instantâneo do desfile dos Cardadores de Vale de Ílhavo, em Pernik, Bulgária (Janeiro de 2019).
Lamento que o meu comentário inicial a este formidável texto não tenha ficado, por culpa minha. Dizia lá que também eu aprendi muito com esta resposta à questão: poderá a imagética ser um contributo para a patrimonialização? É fácil concordar com esta brilhante exposição, sabendo nós que a imagem já fascinava os primeiros seres humanos e se manteve como registo privilegiado de ampliação da memória. E mais eficaz se torna para fixar momentos, costumes, paisagens e símbolos arquitectónicos, se dela constar também a presença humana que se identifica com eles. Muito grata por mais este artigo que faz com que apeteça passar por aqui com regularidade.
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