Pergunto-me,
amiúde, se vale a pena uma pessoa indignar-se. É assim a modos de, em termos
pessoais, fazermos um tratamento psicológico. Uma pessoa deixa extravasar a
momentânea raiva que lhe vai na alma e depois sente-se melhor. Daniel Oliveira,
no seu excelente programa «Alta definição», que passa na SIC no começo dos
sábados, entrevistou, a 23 de Abril p. p., o nosso melhor tenista, João Sousa,
e perguntou-lhe, a dado passo, se já lhe dera para partir a raquete. Sim,
claro, já partira! «Para aliviar a raiva!».
Não
vou partir nenhuma raquete nem um prato sequer. Lavro mui singelamente aqui a
minha indignação, até porque acredito cada vez menos nas instituições tal como
elas hoje são geridas.
‒
E podes, de uma vez por todas, explicar porque estás indignado?
‒
Sim. É muito simples: a minha Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
alfobre de tantos luminares que, séculos afora, terçaram armas pela defesa da
Língua Portuguesa, decidiu veicular as suas informações através de uma… newsletter!
Barafustei,
claro, e dei conta das mil e uma hipóteses de designar esse veículo. Debalde. É
moda, menino, é moda! E também já não há cartazes, mas posters; não temos desdobráveis, mas flyers. E corre voz que as reuniões do Conselho Científico deverão
passar a chamar-se… brainstormings,
cujos membros serão, pois, convocados através de uma mailing list…
Workshop; outdoor; meeting; call for
papers; know
how; derby;«ganhar a confiança do
mister»; OK; feedback... – enchem, como tantas outras, o nosso quotidiano. Mais
compreensíveis, porventura, as que estão ligadas à linguagem informática,
universal: e-mail, download, refresh;
reset – mas… que razão há para as transpor pró dia-a-dia?…
Segundo
motivo de indignação: o mal que se escreve, a todos os níveis. Dou um exemplo
de uma dissertação de Mestrado em Administração Pública, oficialmente orientada
(claro!) por um docente doutorado, aprovada por digno júri e de 81 páginas
disponibilizadas na Internet, certamente após nela terem sido introduzidas as
correcções exigidas aquando da defesa.
O
objectivo em vista era saber se o Município de Cascais, em relação ao Estado e
à sociedade civil representava o papel de «ponte», se se assumia «enquanto
“fórum” conciliador» e se «tem vindo a expandir o seu potencial». Não sei ainda
bem o que isto quer dizer e como se detecta. Transcrevo um parágrafo, em que se
faz a história de uma freguesia. Assim:
«A paróquia de São Vicente de Alcabideche diz
respeito ao final do século XIV, o mais antigo livro de atas da Junta de
Paróquia, conservado no cartório da igreja, remete a sua conceção, em novas
matrizes, para 26 de setembro de 1841, fato que parece derivar da lei datada do
ano anterior, edificando [sic] que a presidência destas juntas era da responsabilidade
dos párocos» (p. 61).
«Professor,
não entendi nada» – escreveu-me uma licenciada que teve acesso ao texto e que
acrescentou: «Quando andei a consultar algumas dissertações de mestrado para a
minha tese de licenciatura, também encontrei algumas pérolas de má construção
gramatical, pobre discurso e linguagem, mas eram teses de arquitectura e eu
pensei que isso não fosse um requisito para elaboração de teses de
arquitectura».
«Não
fosse um requisito…» – será que assim se pensa agora?
Escreve-se
mal. E fala-se mal, comendo metade das sílabas – por isso não somos
compreendidos numa reunião científica internacional. É que nós dizemos «Ê vô
tlefoná»; e o brasileiro diz «Eu vou têlêfoná!». Se compreende, não?
José d’Encarnação
Publicado no blogue da Liga dos Amigos de Conimbriga, a 16-07-2021:
Boa tarde de Sábado!
ResponderEliminarO texto sobre a defesa e perseveração da Língua Pátria que acabas de me enviar, encerra uma triste realidade para a qual não dispomos de meios nem verdadeira vontade de interromper.
O teu exemplo de purista linguística, porém, vai contribuindo para que a nossa língua, um dos nossos mais ricos patrimónios vá conseguindo opor-se à invsão mundial do anglicismo. Por esta tua luta q não é a única, mereces um abraço maior, um abração cheio de ânimo! Teu amigo e patrício Vítor Brito
Já lá vai o tempo da primária em que levava reguadas por cada erro cometido no ditado. No meu primeiro ciclo o professor de português ditava o texto e as perguntas de interpretação de qualquer exercício ou ponto. Era parco nas notas e por cada erro ortográfico descontava 1 valor. A palavra em causa era obrigatoriamente repetida no papel 10 ou 20 vezes. Claras penalizações que despertavam para a escrita correta.
ResponderEliminarConstato que a juventude atual não se importa e não tem consciência de tal. Escrevem com abreviaturas, por vezes difíceis de decifrar, e conforme lhe soam as palavras.
Os ingleses, mais velhos, com os quais privo por motivos profissionais, queixam-se do mesmo!
Como dar a volta à atual degradação linguística? JB
Aos erros de ortografia e de sintaxe, agora juntaram-se os estrangeirismos. É a chamada "escrita inclusiva". Isto não vai melhorar.
ResponderEliminarGostei muito de ler esta manifestação de indignação sentida por quase todos os amantes de Língua Portuguesa. O que me parece mais preocupante, é que há uma crítica generalizada a quem não domina esses estrangeirismos: desactualizados, "cotas" (e designações piores) são mimos comuns... Mais preocupante ainda, é um departamento de uma universidade que se propõe pugnar pela defesa da LP, usar o termo newsletter na primeira oportunidade para comunicar informação. Quanto às dissertações, até no mundo académico o cuidado com o discurso tem vindo a ser negligenciado, e muitas culpas dever-se-ão às confusões do Acordo Ortográfico 1990.
ResponderEliminarPois...e numa escassa dúzia de linhas, também eu escusava de repetir palavras...
ResponderEliminarAgora até anda por aí uma "senhora" que acha que Os Lusíadas não só devem ser eliminados do currículo, como condenados definitivamente como veículo de ideias racistas, machistas e colonialistas...
ResponderEliminarDe: Luís Torgal.
ResponderEliminar17 de julho de 2021 16:59
Gostei muito do teu texto, que imprimi e guardei. Podes dizê-lo publicamente. Eu digo isso há muito, desde o já "tradicional" OK ou, em português, a tal "Boa continuação!", ou até como o brasileiro (dito em português de Portugal) "você", utilizado quando alguém se dirige a qualquer pessoa, mesmo que não a conheça (se fosse o popular "Voce Mecê" ou "Vomecê", como corruptela de "Vossa Mercê", que ouvíamos com carinho nas nossas aldeias…). Ainda referindo o brasileiro e as confusões do português do AO90, recordo (eu que não o uso nem o discuto, porque não sou linguista) que, num Prefácio meu, transformado pela editora com base no dito acordo, havia um "fato" em vez de "facto", pelo que chamei a atenção da editora (para que, ao menos, respeitasse o Acordo) e da autora, que me disse, consternada, que o seu texto era uma "alfaiataria completa", pois tinha 64 "fatos".
Mas concluo que não vale a pena insistir. São pérolas deitadas… a frangos (como a "Margarita ad pullum", da fábula de Fedro). E, quanto ao Português das teses de mestrado ou mesmo de doutoramento, nem vale a pena falar… Voltando ao Inglês, pergunto-me o que será hoje a língua dos "nossos aliados" (só de nome), desde que ela passou a ser usada como língua dita "científica". Nem quero pensar nisso. Mas também quem se preocupa? Os ingleses não, porque, com os americanos, devem considerar que é forma de manterem vivo o seu império, até na língua, ainda que deturpada e cheia de erros de redacção.
De: Maria Madalena Lopes
ResponderEliminar17 de julho de 2021 17:41
Como o compreendo!...
[E Madalena Lopes remeteu-me para o artigo de G. Correia, publicado na edição de 12 de Abril, p. p., do jornal O Observador, segundo o qual «algumas universidades britânicas já aceitam erros ortográficos e gramaticais» com o objetivo de virem a obter uma «escrita inclusiva». E cita-se mesmo o caso da Universidade de Hull, cujos docentes acham que a escrita tecnicamente correcta pode ser "homogénea, branca, masculina e elitista"].
De: Maria Madalena Lopes
ResponderEliminar17 de julho de 2021 17:41
Como o compreendo!...
[E Madalena Lopes remeteu-me para o artigo de G. Correia, publicado na edição de 12 de Abril, p. p., do jornal O Observador, segundo o qual «algumas universidades britânicas já aceitam erros ortográficos e gramaticais» com o objetivo de virem a obter uma «escrita inclusiva». E cita-se mesmo o caso da Universidade de Hull, cujos docentes acham que a escrita tecnicamente correcta pode ser "homogénea, branca, masculina e elitista"].
De: Júlia Nery
ResponderEliminar17 de julho de 2021 19:21.
Senti me muito bem acompanhada nas minhas indignações contra o que alguém chamou «a saloia mania dos estrangeirismos»
É quanto à actual fonia do português, constatei que era irremediável, quando um taxista em S Salvador da Baía me perguntou se eu era argentina.
Obrigada pelo texto. Como sempre, meu amigo, nos faz reflectir.
De: cyberjornal Redacção
ResponderEliminar17 de julho de 2021 22:07
Tristemente é um "desabafo" que compreendo e subscrevo.
De: Francisco Neves
ResponderEliminar18 de julho de 2021 17:43
Em resposta ao seu último e-mail , começo pelo princípio: Restabelecer o anterior acordo ortográfico e mandar o actual às malvas. Já fizeram bastante mal às novas gerações. O que diriam os escritores portugueses do séc. XIX e do séc. XX? Mandavam-no (o acordo) às malvas ou preferiam ir para o Brasil.
E o que fizeram à gramática existente em 1945? Já não bastava a dificuldade existente? Começaram a inventar nomes malucos… Ninguém de reconhecido conhecimento pode alterar uma língua sem mais nem menos.
Há que haver diálogo, colóquio e discussão.. Não é à volta da esquina que se muda a língua. Será o mesmo que mudar o hino nacional. Está tudo maluco…
[…]
De: Regina Anacleto
ResponderEliminar18 de julho de 2021 18:37
Obviamente que estou inteiramente de acordo com o seu “Desabafo”. Tomei a liberdade de o reencaminhar para as pessoas com quem, normalmente, troco correspondência eletrónica. Já recebi vários “gosto”, não de hieróglifo, mas com opinião escrita.
Num outro contexto penso que também se pode juntar o “você” (que, na minha terra, é estrebaria), o “minha querida” (…) e o “amor”…
Enfim… modas e uma linguagem que não vai comigo. Até “cota” já está ultrapassado!
O parágrafo da dissertação que transcreveu é de antologia. Penso que Eça de Queiroz, se o lesse, ficava invejoso!
De: Dora Barradas
ResponderEliminar19 de julho de 2021 11:01
Pois…!
É uma triste realidade que já se vem sentindo desde há muito… mas é difícil lutar contra o instalado e promovido pelas instituições/entidades como “ moderno” !?, novas politicas de funcionalidade , e outros argumentos frouxos, para deixarem de lado a palavra em português e substituir por esses estrangeirismos “oficializados” por uma comunidade europeia que se diz querer ser unida na diferença dos países que a constituem !! ??? ??… Só posso fazer o que faço em outros assuntos assim da mesma índole: dou a minha humilde e pequena contribuição… não usando!!
Não parto raquetes (vontade não me faltaria!), mas, às vezes “bato na mesa”. Não uso e substituo, sempre que posso, nos meus documentos de serviço…
Sei que dá vontade de dizer f..ck you ! Mas podemos dizer PORRA, que é uma bela palavra portuguesa com certeza e enche bem a boca com os dois err’s !!!
Grata pela partilha que também me deixa desabafar!
A começar nos «grandes meios de comunicação» mas perpassando por assessores, consultores e, perdoe-me, outros estupores que enxameiam as empresas, em particular, e a nossa vida, em geral, a invasão de termos anglo-americanos, mais do que uma praga, é um cancro destrutivo da nossa ancestral e tão rica Língua Portuguesa. E não deixa de ser uma manifestação de um novo novo-riquismo apatetado, a armar ao «conhecedor». Por mim, enquanto ao activo e, em reuniões de trabalho, perante algum chico-esperto que avançasse com termos de anglo-economês, solicitava sempre tradução. É que o meu contrato nem me obrigava a saber inglês e sempre ia avançando que o Português era a língua oficial, em Portugal. Assim sendo... Tive dissabores, claro. Mas também gozei um bom bocado, desde sugerir que estivesse um tradutor presente que, já agora, também dominasse o Mirandês e a Língua Gestual. Um fartote... Belo artigo, caro Professor, que subscrevo na íntegra e agradeço.
ResponderEliminarDe: Amadeu Homem
ResponderEliminar18 de julho de 2021 12:23
só duas letras para te dizer que estou inteiramente solidário com o ponto de vista por ti enunciado e que partilho da tua indignação.
Não ganharemos muito com isso, mas, ao menos, também nós partiremos a nossa raquete...