Estranha-se, de facto, aquele altar
romano de calcário achado nos arredores de Beja – sem que se saiba exactamente
onde e em que circunstâncias – dado a conhecer, pela primeira vez, por Leite de
Vasconcelos, em artigo publicado no n.º XX (1935) da revista Brotéria. Todos
os investigadores sublinham o seu carácter único e pressentiram haver ali,
oculto, algo de misterioso. Não ousam falar de “sociedade secreta”; mas, muito
provavelmente, é mesmo disso que se trata!... Vamos ver!
Leite de Vasconcelos voltou a
referir-se ao monumento em 1956, onde esclarece como é que veio parar ao Museu
Nacional de Arqueologia. Um filho de Manuel Joaquim Duro, de Beja, vendera-o a
Luís Reis Santos, que o levou para sua casa em Lisboa. Convidado para o ver a
21 de Novembro de 1933, Leite de Vasconcelos não resistiu e pediu-o para o
(então) Museu Etnológico, “onde hoje está”. Tem o n.º de inventário E 7268.
Interessante é também a informação
dada por Leite de Vasconcelos: “O estrago que a lápide apresenta na parte
inferior resultou de tencionar o seu primeiro possuidor adaptá-la piedosamente
a lousa da sepultura do pai, porque Manuel Joaquim Duro negociara em cousas
velhas (eu próprio lhe comprei algumas para o Museu Etnológico), e o filho
entendia que prestava boa homenagem à memória do pai, cobrindo-lhe os restos
mortais com uma pedra romana”.
Com 80 centímetros de altura, 42 a
47 de largura e 20 a 38 de espessura, o altar apresenta na sua face dianteira
uma inscrição latina que não oferece dúvidas de leitura, por felizmente ter
chegado até nós intacta, sem beliscaduras, como se um enorme respeito
despertasse ou dela se desprendesse algo de mágico – a preservar para todo o
sempre. Neste caso, para nosso regozijo e por ainda mais nos espicaçar a
curiosidade.
Em português, como se poderá
traduzir?
Assim:
«Consagrado à Mãe dos Deuses.
Dois Irineus, pai e filho, ‘criobolados’ no dia do seu nascimento, sendo sacerdotes
Lúcio Antístio Avito e Gaio Antístio Felicíssimo».
Eu não disse que havia mistério?...
A Mãe dos Deuses vem expressa em
siglas – M ‧ D ‧ S – o que denota ser consagração comum, a todos compreensível.
Aliás, o “S” final fazia parte do quotidiano epigráfico, quer nas inscrições
votivas (dedicadas a uma divindade, como aqui) quer nos epitáfios. Desdobra-se
e ‘S(acrum)’ significa “consagrado”, o que lhe atribui um caráter sagrado,
inviolável.
As siglas M ‧ D não oferecem dúvida:
são também habituais para designar a Mãe dos Deuses (em latim, ‘Mater Deorum’),
designação por que era conhecida Cíbele, uma divindade cujo culto, com raízes
na parte oriental do Império Romano, cedo assumiu características muito
próprias, secretas.
Secretas?
Sim.
Os seus fiéis começaram a criar
entre si laços de solidariedade, de camaradagem, unidos como estavam por
interesses comuns. Esta é, de resto, uma tendência de todos os tempos, visível
na actualidade: sob o manto de uma devoção específica, duma causa nobre,
facilmente germinam também cumplicidades políticas e económicas, por exemplo.
Daí que, para ingressar no grupo, o candidato haja de se submeter a rituais
iniciáticos mantidos, por isso, no mais completo segredo.
UM BAPTISMO DE SANGUE?
Como sempre, o mistério desperta a imaginação,
suscita interpretações variadas e quem, por qualquer motivo, ou não é aceite ou
perfilha outras ideias não perderá nunca a ocasião para denegrir o “inimigo”.
Não chegou a dizer-se que os cristãos “comiam criancinhas”, sarcástica
explicação do ritual da comunhão?
Lê-se na inscrição de Pax Iulia que
os dois Irineus foram ‘criobolati’ e ingressaram, desta sorte, na comunidade
dos crentes devotos da Mãe dos Deuses, considerando, pois, esse o dia do seu
nascimento verdadeiro – ‘natali suo’, vem no texto. E então o que é que lhes
fizeram?
O crinobólio dos dois Ireneus, reconstituído por José Luís Madeira!... |
Foram submetidos a um cerimónia
iniciática, presidida, como convinha, por sacerdotes: Lúcio Antístio Avito e
Gaio Antístio Felicíssimo, possivelmente irmãos. Chamava-se a essa cerimónia o
‘crinobolium’, palavra habitualmente aparentada com ‘taurobolium’. Embora
‘crinon’, em latim, significasse “unção”, o certo é que se costuma considerar
que o ‘crinobolium’ esteja ligado ao sacrifício de um carneiro, como o
‘taurobolium’ ao sacrifício de um touro.
Dizia-se atrás das maledicências.
Foi isso, de facto, o que aconteceu.
Dado que a cerimónia era secreta, um
escritor cristão do século IV, Prudêncio, achou por bem “descrever” à sua
maneira, num dos seus poemas, o quadro sanguinolento em que tudo isso, na sua
versão, ocorreria. Assim, em relação ao ‘taurobolium’ (e decerto dessa forma se
passaria também em relação ao sacrifício dum cordeiro), narra Prudêncio,
segundo Emílio Espérandieu, que o iniciado descia a um fosso coberto por um
estrado esburacado. De tronco nu, levava na cabeça uma coroa de ouro, uma mitra
aureolava-lhe a fronte, vestia túnica de seda cingida à cintura. Amarrado em
cima do estrado, o touro era então mortalmente trespassado por longo cutelo, o
sangue escorria pelo estrado e regava o corpo do iniciado. Ao subir,
aclamavam-no os correlegionários, qual neófito! Era como que um baptismo de
sangue. O ‘natalicium’, a regeneração pelo sangue!
EM CONCLUSÃO
Tivesse sido esse ou não o
cerimonial a que pai e filho de bom grado se sujeitaram, o certo é que por aqui
se vê como a população da romana Pax Iulia, além de estar bem dentro dos
costumes oriundos doutras áreas do império, tinha uma vida social bem activa.
Perguntar-se-á: como é que, apenas através duma inscrição tão pequena, se chega
a essa conclusão? Não será generalização despropositada?
Creio que não.
É altar, este, de pequenas
dimensões, sim; e único; mas, por detrás da concisão do seu texto, há,
naturalmente, todo esse mundo a movimentar-se!
Não foi seguramente resultante
de mero acaso desprovido de intenção o facto de, um dia, há mais de 2000 anos –
a inscrição deve ser de meados do século II da nossa era – alguém se ter
lembrado de imorredoiramente nos comunicar, gravando-o na pedra, o que lhe
acontecera e que fora, para si, motivo de grande júbilo.
Não sabemos exactamente
o que foi. Envolto ficou em mistério. Mas que aconteceu, aconteceu!... Os dois
Irineus entraram jubilosamente na comunidade dos devotos da Mãe dos Deuses, a
magna Cíbele!
José d'Encarnação
Publicado em Diário do Alentejo, nº 2046, 09 de Julho de 2021, p. 13.
Obrigada, Professor por este ensinamento.
ResponderEliminarSerá que o Homem não consegue deixar de ser " sanguinário" e substituir o secretismo por outra opção,melhor?
Votos de descanso neste tempo que chamamos de férias!
Que interessante...como se busca desde sempre o mistério...e se quer mergulhar nele.
ResponderEliminarHaver quem se embrenha em o descodificar é tambem3 um mistério..e felizmente que nós temos a sorte de participar nessa descberta ( lendo...)
Sempre a aprender.
ResponderEliminarQue texto fabuloso. E a propósito de um altar romano de calcário, de "pequenas dimensões", até, encontrado nos arredores de Beja! As palavras inscritas também não são assim tantas, mas por elas o autor consegue a fascinação de descerrar uma cortina sobre a História e fazer-nos viajar para trás, no Tempo. São As Pedras Que Falam, título do fascinante livro de José d´Encarnação que tenho o prazer de estar a ler...
ResponderEliminarQue bela lição de Epigrafia!
ResponderEliminarNada sabia sobre a pedra de altar de Pax Julia e fiquei esclarecido com a tua fascinante explicação.
Bem-haja. Um forte abraço.
Muito elucidativo, muito conhecimento e uma ótima aprendizagem.
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