2.
Muitos de nós terão recebido o vídeo em que a menina responde à professora que
o que gostava mesmo de ser era um smartphone,
porque os pais gostam muito do smartphone;
jogam muito no smartphone e nunca brincam com ela;
porque a mãe nunca se esquece de carregar o smartphone,
mas, às vezes, esquece-se de lhe dar comida a ela; porque o pai dorme com o smartphone
na almofada e nunca dormiu abraçado a ela…
3. Muitos de nós terão também recebido o
vídeo de um casal à mesa. Pode aceder-se a ele no youtube: «A última vez
que acabou a bateria». A cena começa quando, chateado
de todo, o marido se apercebe de que a bateria do smartphone acabou e, para matar o tempo e não ficar ali feito
bacoco, atira de vez em quando uma pergunta: «Você pintou o cabelo?». «Sim»,
responde a mulher, «há quatro semanas». E, pergunta lenta atrás de pergunta
lenta, verifica-se que o homem não sabe que a mulher há muito mudou de patrão;
que morrera a amiga íntima dela (a cujo velório ele próprio assistira, mas nem
se lembrava). E o clímax atinge-se quando um catraio aí de uns quatro anos vem
pedir à mãe para continuar a brincar mais um bocadinho e o senhor, franzindo o
sobrolho, pergunta a medo: «É meu?... E quando foi?». «Da última vez que acabou
a bateria!», responde a mulher.
4.
Entro na pastelaria aonde vou buscar o almoço. E pasmo: um senhor, de auscultadores
de alta-fidelidade, come a ver um filme no tablet
e diante dele estacionam, bem à vista, dois smartphones…
O senhor, a comida, o fiklme e os dois telemóveis... |
5.
O António esteve meses a fio num ambiente asséptico, após implante da medula.
Entre a vida e a morte. Tive, enfim, ocasião de o abraçar, após, ao longo de
meses ter contactado com a família e os amigos a saber dele e, finalmente, já o
ter conseguido apanhar pelo telefone. Pois também em relação
a ele, foi o abraço «tás com excelente aspecto, homem, folgo muito em ver-te,
que bom!» – e desapareceu pouco depois, porque outra tarefa urgente o esperava.
E
fico a pensar se isto é rendibilizar o tempo, aproveitar todos os minutos ou,
ao invés, a mais pura estupidez. Será que já nos esquecemos de… viver?
José d’Encarnação
Renascimento (Mangualde), 1 de Abril de 2017, p. 11.
Teresa Silva 5/4 às 8:04
ResponderEliminarLi há algum tempo um livro inquietante: "Sociedade do Sesassossego". Não tenho presente o nome do autor, sei que é um filósofo moderno, mas ainda hoje tenho momentos de reflexão sobre as inquietações que me deixou!
Liliana Sintra 5/4 às 9:21
ResponderEliminarGosto tanto de o ler, Zé.
Julieta Lima 5/4 às 18:47
ResponderEliminarGosto muito de ler as suas crónicas. Bj grande
Edgar Valdez 5/4 às 22:45
ResponderEliminarCaro Zé Manel: estas crónicas dizem-nos muito sobre a «modernidade» dos tempos que correm. Há que aguardar e esperar por melhores dias. Abraço, Edgar.