domingo, 17 de setembro de 2017

Desprendimento

           Os membros de congregações religiosas não contemplativas são amiúde deslocados de uma comunidade para outra, consoante as necessidades. Aliás, também em obediência ao voto de pobreza que professaram, são parcos os seus pertences – na certeza, de resto, de que nenhum dos nossos pertences se leva para a sepultura.
Compreendo agora melhor o que significa desprendimento dos bens materiais, ao verificar quantos dos casais jovens vão viver para, por exemplo, o Reino Unido. Arrendam uma casa, mas depressa hão-de mudar de emprego e, por conseguinte, de morada. E lá vão eles, de tralhas atrás…
            É curiosa, nesse sentido, a imagem de um aeroporto, ao vermos as pessoas – são sobretudo jovens, mas também há os de meia-idade e até seniores – a puxar pesadas malas, com suas roupas e outros haveres. Abençoado Bernard Sadow, que inventou as malas com rodinhas, invenção patenteada em 1972 com a designação de rolling luggage, prontamente adoptada pelas tripulações que andavam sempre de cá para lá, a dormir em hotéis, sobretudo quando se tratava de viagens de longo curso…
            Essa, aliás, a sensação que começa a ter-se quando se antoja a oportunidade de – aproximando-se a Grande Viagem – se dar destino ao que fomos, ao longo da vida, considerando imprescindível e ora se nos afigura menos necessário a nós e mais útil a outrem, quando os descendentes também consideram poder prescindir desses carregos, porque também eles encaram a existência, mormente a nível profissional, como algo que já deixou de assumir em definitivo o carácter de permanente, duradouro, «para a vida».
            Portanto, aquela imagem de «alijar carga», que nos surgia apenas quando se falava de barco em perigo de afundamento, deixou de ter apenas esse significado concreto, exclusivo. Um progresso? Uma mais-valia, inclusive em termos espirituais, porque todas as religiões apregoam justamente o desprendimento como via para atingir a perfeição?
            Se for essa uma ideia que se generalize e serenamente se aceite, não há, evidentemente, problema nenhum; se, ao invés, tal acarretar desenraizamento, perda de identidade, motivo de desconforto real e permanente, precisamos urgentemente de sobre isso reflectir.

                                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 714, 1 de Setembro de 2017, p. 11.

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