Na comédia O Homem que se Puniu a Si Mesmo, de Terêncio, logo na primeira cena do I Acto, Menedemo pergunta, em tom de ironia, a Cremes, um ancião seu vizinho, que se mostrava preocupado com ele: «Ó Cremes, tens assim tão pouco que fazer, que te sobra tempo para te ocupares das coisas dos outros?». Ao que o ancião responde: «Sou homem. Nada do que é humano me é alheio!».
Esta frase nihil humani a me alienum puto – que Séneca reproduzirá em Ad Lucilium Epistulae Morales 95, 53 – ousaria eu próprio proferir, quando Claus Bunk teve a gentileza de me convidar para participar neste número sobre «as novas tendências na pintura, dança, teatro, música, streetart, etc., em Portugal». Aceitei um pouco inconscientemente; mas, na verdade, como jornalista e como docente de Património Cultural, nada «do que é humano me é alheio». Não sendo, porém, especialista em nenhuma dessas áreas, que poderia eu anotar que saísse do que, naturalmente, todos poderiam dizer?
Por outro lado, se, antes do surto epidémico, já se praticava a ‘globalização’, entendendo por esta palavra o facto de uma atitude, aqui e agora, poder vir a ser conhecida e reproduzida minutos depois – ou, por vezes, simultaneamente – em todas as partes do mundo, estamos conscientes de que, em virtude da pandemia, essa globalização aumentou enormemente. Peter Koj, com o seu pequeno conjunto musical, vem para a rua e executa peças para regalo dos vizinhos, numa perdida rua de Hamburgo; todavia, pelo mundo fora, de imediato, se criaram, quase de geração espontânea, grupos idênticos. A fadista, em Lisboa, decidiu vir cantar à janela, acompanhada pelo trinar da guitarra que vem do prédio vizinho!...
Direi, pois, que reside aí uma nova tendência ora gerada a todos os níveis: no estreitamento enorme das relações, na criação de uma comunidade mais alargada. E quando se diz «alargada» importa frisar que se trata de um alargamento a nível mundial, pois já tivemos oportunidade de, pela televisão, assistirmos, por exemplo, a concertos em que participam músicos de países diversos que nem saíram das suas casas!... E esta é uma novidade enorme, que revolucionou por completo todas as artes!
Estreou, a 18 de Setembro, na RTP 1, o programa Ensaio, que reflecte um conceito deveras inovador e que resulta desta confluência de interesses, eu adiantaria mesmo que resulta desta ‘comunhão’ de interesses, não enjeitando, sequer, a conotação religiosa que pode atribuir-se à palavra comunhão. Nesse primeiro programa, Boss AC (nome artístico de Ângelo César do Rosário Firmino, natural de Cabo Verde), um pioneiro do hip hop em Portugal, actuou, no ambiente descontraído de um ensaio, em conjunto com a fadista Cuca Roseta! Fado e hip hop em diálogo! Alguma vez tal se poderia imaginar?
Carlão, um rapper de origem angolana, tem o maior êxito entre nós, porque a crueza das suas rimas reassume, dir-se-ia, num outro tom (é certo), o que foram as trovas de resistência de antes da Revolução de Abril. Falam do quotidiano, das certezas e das incertezas. Falam da… vida!
Cada vez mais se está a dar importância ao bailado, à dança em geral, ao virtuosismo das artes circenses e também às manifestações artísticas. Não é só por o fado ou o cante alentejano terem sido classificados como patrimónios culturais da Humanidade que há, hoje, muitos mais cultores dessas duas modalidades musicais: é porque através delas, cada uma à sua maneira, se manifesta o Homem e o seu mundo.
O vírus contribuiu para a melhor saúde do planeta; mas contribuiu também para dar maior consciência aos seus habitantes: «o mundo é a nossa casa», proclama um anúncio publicitário – e disso cada vez mais nos consciencializamos (evidentemente, os que temos consciência…).
Incluiria nesse movimento a street art, que aprecio deveras, justamente porque contribui para amenizar e humanizar os locais urbanos. Temos um Vhils, pseudónimo de Alexandre Manuel Dias Farto, nascido em Lisboa (1987): quem diria, há dez anos, que os seus grafitos parietais viriam a ser apreciados no mundo inteiro? Mais uma vez, a Arte a despertar consciências, a reinventar o que, pelos meados do século XX, se designou o «mundo melhor».
Agora, são os artistas que cantam o «novo normal» – título do mais recente disco de Sérgio Godinho, cantor que celebrou com ele os 75 anos de idade e os 50 de carreira. E aí se diz:
No novo normal
Caem corpos à sorte
Em valas comuns
Num silêncio de morte
Cortado somente
Por soluços distantes
Por seu turno, o artista português, Cristóvam, nascido na Ilha Terceira (Açores) compôs em casa e lançou pelo mundo a canção «Everything will be all right», que depressa se transformou como que no ‘hino em tempo de pandemia’: At least I'll try and run and run tonight / Everything will be alright / Everything will be all right…
A esperança pela qual – mais do que nunca – ora lutamos!
As Artes – todas as Artes! – na sua missão de até o horrendo transformarem em Belo vão cumprir a sua missão!
José d’Encarnação
Publicado em Portugal-Post [Correio Luso-hanseático], Hamburgo, 68, Novembro 2020, p. 31-33. [Versão bilingue].
Informação ao leitor:
ResponderEliminarretirei a versão anterior, na presunção de que poderia incluir uma correcta, com os parágrafos devidamente divididos, como se poderá vislumbrar na reprodução que se faz do texto como se publicou na revista. Peço desculpa por dificuldades informáticas de momento insuperadas me haverem impossibilitado de apresentar o texto como deveria.