Para ilustrar a situação calamitosa em que se encontram os
nossos cursos de água, provocada, de modo especial, pela existência de
demasiadas barragens, quinta-feira à noite, 20, falou-se de percas no programa
da RTP 1, “Linha da Frente”.
É fácil relacionar perca com perda, uma vez que, na
realidade, amiúde ouvimos utilizar uma palavra em vez da outra. Perca é, de
facto, um peixe; nada tem a ver com perda, ausência de qualquer coisa que antes
se tinha...
E atentei no quão subjectivo é o significado profundo da
palavra 'perda'.
¿Não é verdade que só damos valor ao que perdemos, no
momento essa perda se verifica? Só então nos apercebemos da falta que nos faz e
da quantidade de funcionalidades que tinha no nosso dia a dia.
Sentimo-lo durante estes tempos pandémicos. O significado de
um abraço, que porventura antes davas quase instintivamente, sem lhe atribuíres
uma importância por aí além. E que saudades agora!... Abrias a porta e logo a
Bonnie vinha roçar-se nas tuas pernas, ronronando, a pedir-te uma carícia. A
Bonnie, tua companhia diária durante dezasseis anos, repousa agora num
aconchegado recanto do teu jardim – e tu vais continuar a sentir a falta da sua
atenção.
Perda traz uma enorme sensação de vazio, de algo que, por mais
insignificante que pudesse parecer, nos preenchia um pedacinho de vida.
Partiram recentemente o arquitecto paisagista Gonçalo
Ribeiro Teles e o pintor surrealista Cruzeiro Seixas. Perdas, neste caso,
nacionais e de repercussão internacional.
De Ribeiro Telles recordarei sempre uma das várias reuniões
em que ambos estivemos presentes, para discutir processos de salvaguarda da
Área Protegida de Sintra-Cascais. "Ponham-lhe gente dentro!",
insistia. Gente que lhe cultive as áreas disponíveis, que ali leve os rebanhos.
Diminuirá grandemente o risco de incêndio e haverá aproveitamento.
"Ponham-lhe gente dentro!"
Ninguém como ele para humanizar a paisagem, para a fazer à
nossa medida!...
Visitei Cruzeiro Seixas a 15 de Dezembro de 2010 , tinha
acabado de fazer 90 anos, no apartamento em que vivia, numa casa de repouso
junto à rotunda dos Reis de Espanha, na saída norte do Estoril.
Recordámos a sua passagem pela Junta de Turismo da Costa do
Sol e, de modo especial, a celeuma que provocou a sua intenção de ali se fazer
uma exposição erótica. Ia caindo o Carmo e a Trindade! E Serra e Moura, o
presidente, sempre tão condescendente, tivera que ceder às pressões. A
exposição não se fez.
Momentos altos se viveram, na ora integralmente morta
galeria da Junta, durante o tempo em que Cruzeiro Seixas a dirigiu. Uma pedrada
no charco no então dolente panorama das Artes Plásticas em Portugal!
Outro aspecto me ligou a Cruzeiro Seixas: é que, a
determinado momento, decidiu, a convite de Tomás Ribas, delegado da Cultura do Algarve,
abandonar a agitação da vida urbana e fixar-se
tranquilamente, de
1984 a
1989, em Calçada, pacata povoação
algarvia, do meu concelho, S. Brás de Alportel, para ali, usufruindo das
delícias do Barrocal, dar livre curso ao seu espírito criador, na Arte e na
escrita.
Ribeiro Teles, Cruzeiro Seixas - duas perdas, dois vazios a
que pouco a pouco ainda virá a dar-se importância maior.
José d'Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 328, 2020-11-25, p. 6.
Duas enormes perdas. Que não percamos mais!
ResponderEliminarDuas tristes perdas.
ResponderEliminarUm texto,umas palavras a não perder Cada vez a usamos mais, infelizmente !
ResponderEliminarJulia Franco
ResponderEliminar26 de novembro às 23:38
Tenho mesmo que levar,sim, Professor?
Fiquei muito consternada com a partida do Arq.Ribeiro Teles.
Quanto a Cruzeiro Seixas,aprecio a sua obra do desenho a escrita.
Perdemos dois dos maiores vultos da nossa Cultura!
Boa noite! Obrigada!
Parabéns por este lindíssimo texto. Não gosto de perca, que às vezes, nos restaurantes, querem fazer passar por cherne, mas ainda gosto menos de perdas, sobretudo de vidas humanas como as que são aqui referidas. Cada um à sua maneira, estes dois grandes vultos nacionais deixaram um vazio difícil de preencher. Menos mal que ambos obtiveram reconhecimento em vida. E valem-nos estes bons pedaços de prosa para o justificar.
ResponderEliminarUm texto cheio de humanidade, como é seu apanágio, e com o conteúdo do qual nos sentimos sempre gratificados. Obrigsdo, caro Professor.
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