– Quem é Joaquim Pessoa? Ou seja: que ideia faz de si próprio?
– Sou um militante da vida, um ser solidário que se revê e que faz parte dos outros, num mundo em que é uma utopia viver-se só, no sentido de que a vida, sendo a melhor de todas as coisas, deve ser partilhada com aqueles a quem amamos. Fundamentalmente, um poeta é os outros, pois é para os outros que escreve e a sua obra será sempre mais dos outros que de si próprio.
– Escreveu António Machado: “Caminhante não há caminho. Faz-se o caminho ao andar! E, ao olhar para trás são pegadas tuas o que vês” (tradução livre, a minha!) Ocorre-me, pois, perguntar que caminho foi o seu? E que pegadas deixou?
– O meu caminho, como o dos poetas em geral, tem sido um caminho solitário, na criação. Escrevi um dia: “A escrita é um acto solitário, e o poeta resultado dessa solidão, a solidão de um útero imenso, um vulcão que expulsa de dentro de cada um de nós as coisas mais difíceis de transformar, numa lava que vai tomando a forma das palavras, e as palavras são sempre, mas mais ainda, aquilo que nomeiam. De resto, não há destino, como afirma Machado. Somos nós que o fazemos, e é pelo rasto que se pode ver o caminho andado. Quanto ao meu próprio rasto, também um dos meus sonetos termina interrogando: “Porquê ambicionar ser imortal / se nunca saberei se fui capaz?”.
– Retrospectiva implica, amiúde, nostalgia e, até, algum pesar por não se ter logrado atingir metas fixadas. Assim acontece consigo?
– Não acontece, de facto. Não fixo metas. Procuro sempre fazer o melhor que posso e sei, ir o mais longe possível e o objectivo é, sempre, implícito: superar-me. A luta dos poetas é consigo mesmo e com as palavras. São elas que o escrevem, que o descrevem, que determinam o lugar e o tempo do poeta.
– Há pulsões internas que levam uma pessoa a ser Poeta, a exprimir por poucas palavras o que outros dizem por muitas ou nem sequer dizem. Como se sente Poeta?
– Não me sinto Poeta, sou Poeta. E nem sei se a pulsão é interna. Na realidade, no meu caso, penso que ela é externa a mim mesmo é, como diz Kierkgaard, o criador do acto poético não é mais do que um escape de uma linguagem universal. Cósmica, direi eu. E como se passa na construção de tudo o que é natural, o que for excesso mata ou atrapalha. A síntese é, na realidade o grande trunfo da poesia. Não terá sido por acaso que tantos poetas tiveram o seu percurso profissional ligado à Publicidade, actividade onde o tempo e o espaço custam muito dinheiro.
– Poeta é também aquele que sabe sentir o Homem de todos os tempos nas mais diversas manifestações artísticas? Foi essa tendência que o levou a ser coleccionador?
– O poeta é um ser, um homem de todos os tempos. O poeta carrega em si mais de cinco mil anos de cultura e, quando escreve um poema, é como se ele tivesse sido escrito pela mão de muitos milhares de homens em muitos milhares de anos. É por isso que a grande poesia (a Poesia) não tem tempo, é de todos os tempos, é de todas as idades. E esta forma de a sentir terá sido, talvez, o que me levou a ser coleccionador: viver neste tempo o tempo de todos, já que, na realidade, o tempo não existe, é a mais perigosa todas as abstracções.
– Que vida é essa de coleccionador? A de um homem rico – em dinheiro ou em saber?
– Convém, antes do mais, deixar claro que um coleccionador não é um ajuntador. É um amador no sentido literal do termo: aquele que ama, aquele cujo amor cobre a coisa amada que, se por um lado lhe pertence, a ela pertence também, de forma a transformar-se no guardião de um passado que, como um presente, ele há-de oferecer ao futuro. Porque coleccionador não é apenas aquele que junta, que guarda, mas também o que investiga, compara, defende, conserva e estuda com um deslumbramento permanente, para depois mostrar, dar a fruir, repartindo assim aquilo que durante algum tempo foi um enorme e profundo privilégio individual, transformando o que até aí pareceu egoísmo muito fechado numa generosa forma de partilhar com os outros aquilo que ele tem consciência de a todos os outros também pertencer. Como afirma a magnífica assinatura de uma das mais prestigiadas marcas de alta relojoaria, nós, coleccionadores, nunca somos verdadeiramente donos de um objecto. Só cuidamos dele para a geração seguinte. O coleccionador é sempre um homem rico, normalmente em saberes, como um Guardador de rebanhos.
– Sente-se… português? O espólio que foi reunindo tem a ver com um gosto meramente pessoal ou, também, com a vontade de não deixar fugir um património que, sendo seu, considera também de todos?
– Sinto-me, como disse o meu homónimo, homófono e homógrafo, um cidadão cuja pátria é a língua portuguesa. Este núcleo ibérico foi criado pelo facto de em nenhum espaço museológico nacional ter visto um conjunto tão significativo de artefactos iberos e celtiberos, povos que, na realidade, são as nossas verdadeiras raízes. Durante muitos anos fui adquirindo este conjunto que acabei por doar à minha mulher (Inês Pessoa) no dia em que atingi os 50 anos de idade, e parti noutra direcção porque um coleccionador é assim, não pára de procurar, a busca é permanente e, como lembra o Dr. Tarzzi, arqueólogo afegão ligado aos Budas gigantes que foram destruídos pelo governo dos Talibans, que quando estudamos um objecto, pensamos nele como um pertence pessoal. Aquilo, diz ele, torna-se um ente querido, um filho nosso. Claro que a preocupação de não deixar fugir o nosso património é grande e, nesse aspecto, essa preocupação do coleccionador é por vezes maior do que aquela que, amiúde, o Estado tem revelado.
– Que significado pode ter para si esta exposição?
– Penso aquilo que a minha mulher, detentora actual deste núcleo igualmente pensa: é uma forma de dar a possibilidade justa de cumprir um desígnio, mostrando pela primeira vez algo que o público de outra não teria possibilidade de conhecer. É tornar dos outros o que até aqui foi apenas nosso. E também uma homenagem merecida aos artesãos nossos antepassados que nestes objectos deixaram, para além da canseira, o seu tempo, o seu talento, a sua criatividade e uma deliciosa transposição do passado para o futuro. Porque, na realidade só o passado existe e é com ele que construiremos o que há-de vir. O presente não existe, é gerundivo, está existindo. E o futuro é o que disse Alberto Caeiro: “O que for, quando for, é que será o que é”. Este “voo sobre os Iberos” é, por tudo, também um voo sobre a nossa identidade, e demonstrativo igualmente de um percurso rico de influências das culturas mediterrânicas, alma mater da nossa cultura pré-atlântica.
– Como gostaria de ser recordado pelos vindouros?
– Caríssimo Professor, os vindouros não me conhecerão nunca, apenas conhecerão a minha obra, que é tudo o que pude e soube dar aos outros. Essa obra é deles. Julguem-na, e estarão a julgar-me, porque a minha obra sou eu e, se alguma diferença houver para melhor, ela será sempre a favor da Obra, não do Homem.
Publicado em Duas Linhas, 22-04-2021: https://duaslinhas.pt/2021/04/joaquim-pessoa-um-coleccionador-e-como-um-guardador-de-rebanhos/
Peças da colecção de Joaquim Pessoa |
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