Têm
os arqueólogos especial predilecção pelas lixeiras.
A sério?
Sim, porque para a lixeira se vai
deitando tudo aquilo que já não serve, que se partiu e não há meio de arranjar
ou a gente já não está para aí virada... E, como de cacos partidos e quejandos
se pode reconstituir o recipiente inteiro, a lixeira é uma mina de informações!
A propósito
de minas, diga-se que foi precisamente no meio das escórias – ou seja, do lixo
deitado fora pelos Romanos quando, há dois mil anos, exploraram as minas de
Aljustrel – que se encontraram dois dos mais preciosos documentos que temos, a
nível mundial, para estudar a legislação mineira desse tempo.
Trata-se
de duas placas de ‘bronze’ com inscrições gravadas: as chamadas vulgarmente
«Tábuas de Bronze de Aljustrel».
Foi a
primeira – que está no Museu Geológico, em Lisboa – achada no ano de 1876,
entre as escórias de minério de cobre provenientes da mina de Algares, uma das
que foram então exploradas. Designa-se habitualmente por Vipasca I (Vipasca
foi o nome dado pelos Romanos à localidade). Expõe-se a segunda (Vipasca II)
no Museu Nacional de Arqueologia; foi encontrada em 1906, igualmente no
meio das escórias.
Então, sendo leis – perguntar-se-á –
não deveriam ter sido postas em lugar de relevo? Como é que foram para o lixo?
Há, de facto, em Vipasca I, dois orifícios que documentam ter sido a
placa destinada a ser afixada em lugar público, para que todos a vissem.
A ida para o lixo justifica-se por serem
leis que iam sofrendo alterações segundo as novas circunstâncias que ocorriam;
e, assim, havendo outra lei, se não podia emendar-se a anterior, esta
deitava-se fora e outra se fazia. Aliás, verificou-se, decerto, que se indicou
‘bronze’ – entre vírgulas altas – o material em que essas duas placas foram
feitas, porque é opinião dos investigadores que era localmente que esses
documentos se faziam, em material não muito caro, até porque essas disposições
legais se adaptavam às circunstâncias do local, independente de haver, de
facto, uma legislação geral emanada do imperador.
De que tratam essas leis?
Dir-se-á, em primeiro lugar, que
ambas as placas fazem parte, cada uma, de um documento maior, de que nos faltam
as outras ‘peças’, desconhecemos quantas – duas ou três mais.
Regula Vipasca I a vida
quotidiana. Como assim? Não, já percebo a razão da pergunta. Não: os romanos de
Vipasca não estavam agrilhoados por ditames rigorosos para o seu
dia-a-dia, como nós, hoje (felizmente!) ainda temos alguma liberdade de acção!
O que se passava é que determinadas actividades eram concessionadas, como o são
na actualidade, por exemplo, os transportes públicos e também o comércio e a actividade
industrial estão sujeitas a regras. Vipasca I indica as regras a que
devem obedecer: a concessão da exploração dos vários poços; a adjudicação dos
leilões; a exploração do balneário; o exercício dos ofícios de sapateiro, do barbeiro,
do pisoeiro, dos negociantes de escórias…
Fig. 1 - Vipasca II |
Já Vipasca II (Fig. 1) detém um carácter
mais técnico e financeiro, digamos assim, uma vez que, além de estabelecer
regras práticas para a exploração dos filões, de modo a salvaguardar sempre a
segurança, indica claramente os impostos a pagar ao fisco. Anote-se, a título
de curiosidade, que já havia quem, indevidamente, se apossasse de um poço;
nesse caso, era natural que pudesse ficar com ele, embora fosse obrigado a
declarar, dentro de dois dias, o que fizera e se disponibilizasse a pagar o que
se estabelecesse.
O caso do balneário
Balneário é palavra que, na actualidade, diariamente se ouve em contexto desportivo. Mesmo os mais leigos na matéria têm uma ideia clara de que o «balneário» – antes, durante e após um jogo… – funciona envolvido num certo misticismo, realmente importante. E não é que os balneários já no tempo dos Romanos estavam imbuídos desse véu muito especial?!...
As
casas mais importantes tinham as suas próprias termas, como as cidades as
tinham também. Banhos quentes, banhos frios, banhos tépidos e… o lugar para a
conversa, pois nem sempre os utentes estavam dentro das piscinas!
O confinamento a que a pandemia nos
obrigou fez-nos avaliar melhor o valor desse convívio – que os Romanos já
deveras apreciavam, porque, na realidade, muitos dos negócios aí se ajeitavam.
Dir-se-ia que o otium – o lazer – estava de mãos dadas com o negotium
–o não-ócio, a gestão.
Não
terá sido, consequentemente, por acaso
que, na villa romana de S. Vitória do Ameixial (Estremoz), o senhor
mandou gravar no mosaico que dava para uma das piscinas das suas termas
privadas a seguinte frase que mostra bem a importância que ele dava à arte de
bem receber:
Fig. 2 |
«Felicião, escaldado, é pior do que
um carroceiro!».
E a imagem que a frase legendava
mostrava-o a fustigar com um ramo a escrava desnudada que não soubera manter a
água à temperatura adequada! (Fig. 2).
No
caso de Vipasca, o concessionário do balneário era obrigado a mantê-lo
aquecido, «totalmente a expensas suas, diariamente» até ao primeiro dia de
Julho; a água devia correr abundantemente e, caso o procurador das minas verificasse
que o balneário não estava em condições, o concessionário seria multado!
Se encontrares prata…
Como é sabido, as minas de Aljustrel
situam-se na denominada faixa piritosa do Sudoeste, que se estende desde a
província espanhola da Andaluzia até ao Oceano Atlântico. Ora, as pirites não eram
apenas minérios de ferro, pois que tinham, por vezes, a elas associado bom teor
de prata e mesmo de ouro, o que constituía, portanto, um rendimento extra, deveras
cobiçado.
Não
admira, por isso, que o legislador, assim como quem não quer a coisa, haja estipulado:
«Aquele que abrir poços de prata a
partir do canal subterrâneo destinado ao escoamento de águas das minas, prosseguirá
a exploração de forma a afastar-se e a deixar de cada lado um espaço inexplorado
de, pelo menos, sessenta pés; e manterá as escavações nos limites legais».
Isto
é, trocando a frase por miúdos: caso se deparasse com um filão rico em prata, a
tentação seria de o explorar o mais possível, pondo inclusive em risco a
segurança de todos; daí a prescrição: «Encontraste um filão de prata? Então,
não te esqueças das regras e… não sejas lambão, que há valores mais altos a
respeitar!».
ooo
Fig, 3 |
Enfim,
curiosos testemunhos de um passado que nunca é de mais recordar!
José d’Encarnação
Publicado em Diário do Alentejo,
31-03-2021.
«Encontraste um filão de prata? Então, não te esqueças das regras e… não sejas lambão, que há valores mais altos a respeitar!» - Princípio que anda algo esquecido, infelizmente.
ResponderEliminarQuanta informação neste soberbo texto sobre a aquilo que certos lixos podem revelar...E a propósito disso viajamos pela História com José d´Encarnação até às escórias romanas de Aljustrel, onde foram encontradas as Tábuas de Bronze, partes de documentos mais extensos: sobre a vida diária relacionada com as concessões de exploração dos poços de cobre; sobre legislação de segurança e sobretudo estipulação de impostos. É muito importante perceber estra organização romana (ou local, sob domínio romano) e o rigor que envolvia a relação com os concessionários. Gostei muito também desta lembrança de juntar o útil ao agradável na paz do balneário...Tanto a dizer do sobre o gozo de ler...
ResponderEliminarTexto contendo informação bem interessante e numa linguagem acessível a todos. Gostei.
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