Silêncio.
Embala-me o cadenciado e metálico tiquetaque do relógio, pêndulo a marcar, inexorável,
os segundos do meu viver. Tenho o olhar fixo na distância. Não mo cativa nenhum
dos objectos da sala e, nessa distância, com ele o pensamento voa. E sonha.
Sonho que é, neste caso, fuga da realidade invisível, por se querer alojar onde
sinta o aconchego.
Vibrou
a meia-hora.
Ao
jantar, eu remirei a cortina presa daquela tela antiga, de 1996, de Nélio
Saltão. Saltei por cima da romã e do marmelo e parei na cortina da janela.
Ilusão minha até hoje: não é branca nem pura, como eu sempre a vira –
povoam-na, afinal, indefiníveis reticulados, a catapultar-me para um outro
mundo. Esse, o do sonho. Onírico, dirão os estetas da linguagem.
Daquela
natureza morta dos primeiros anos, zarpou Nélio Saltão, de rumo bem definido.
A
cor.
As
cores.
Sem
regra, sem régua. Sem forma legível. Não são quadros para ler – são veículos
para sonhar. Tu imaginas. Tu navegas nessas pretensas geometrias e vais além.
Além!...
Manchas
de cor? Não! Mancha é palavra negativa e, aqui, o impulso é positivo.
Imagino
Nélio Saltão diante da tela virgem. Que irá sair dali? ¿Terá sido o desabrochar
lento, carmesim, dum botão príncipe negro a inspirá-lo agora e, impossibilitado
de ali espelhar o seu bem sedutor perfume, deixou a trincha mergulhar,
delirante de prazer, nesta cor e mais naquela e naqueloutra?
Júlio
Pomar, em Da Cegueira dos Pintores (p. 127), fala da «motricidade
corporal do gesto: movimento do dedo, do punho, do cotovelo, do ombro, o golpe
de rins, o corpo todo do pintor na refrega».
Não
imagino Nélio Saltão em refrega. A serenidade que das suas telas se desprende
(ou serei eu que, sereno, me deixo embalar por elas?), tal serenidade não
requer luta nem labuta mas sentimento!
Sem
títulos as pinturas. Nem os poderiam ter. Têm nome os sonhos? Não podem.
Horas
infinitas tentaram perceber o sorriso da Mona Lisa. Outras mais, ininterruptamente,
a esmiuçar pormenores da Última Ceia de Leonardo ou do Guernica de Picasso. Os
quadros de Nélio Saltão não são para perscrutar nem permitem esmiuçamentos –
contemplam-se!
Senta-te
aí, tranquilamente; deita os olhos a passear pelas cores; abstrai-te do resto
do mundo – e o Sonho tomará posse de ti e sentir-te-ás a navegar, suave, num pélago
multicolor, onírico…
Depressa
compreenderás que é ele, o Sonho, que está, na verdade, ao leme do teu batel!
José d'Encarnação
Publicado no catálogo SALTÃO – Geometria Imperfeita. São Mamede Galeria de Arte, Lisboa, Maio 2021, p. 78.
Serenidade, é como posso traduzir os últimos minutos embalada pela beleza lírica deste texto. Com ele visualizei a "motricidade corporal do gesto" nos quadros de Nélio Saltão. Fui o Tempo (porque nós somos o Tempo, povoamo-lo) nestes momentos de deleite que o texto proporcionou. Nunca tinha reparado, ou não me lembrava, que podemos facilmente entrar noutra dimensão mergulhando os olhos numa tela, Fazêmo-lo através da composição, da cor e dos sentimentos que afloram. E a copa da ramagem lá fora pode esperar enquanto o sonho dura. Um grande abraço, querido Amigo. O texto é maravilhoso.
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