«Numa
época em que os distanciamentos geracionais são cada vez mais evidentes, em que
os relacionamentos humanos se desintegram e o abandono leva à solidão dos
corpos encontrados meses depois da morte, o macabro desta comédia ganha uma triste
dimensão trágica para todos nós» – é a frase final de Miguel Graça, na
apresentação de «Arsénico e Rendas Velhas», de Joseph Kesselring, a peça que
Teatro Experimental de Cascais estreou no passado dia 23.
Escrita exactamente no ano em que
começou a II Grande Guerra (1939), cujos horrores ainda se não conheciam mas
decerto já se adivinhavam, a peça subiu à cena em 1941, em Nova Iorque, e, no ano
seguinte, em Londres. Explica Miguel Graça, que foi o competente responsável
por esta versão actualizada (parabéns!), que o êxito então obtido se explica
também pela necessidade sentida por americanos e ingleses de encontrarem um
divertido escape para a pressão psicológica com que os acontecimentos bélicos
quotidianamente os oprimia. Rir para não chorar; procurar ver com outros olhos
uma realidade inexoravelmente bem dramática.
Acontece, porém, que, não estando
nós numa guerra mundial de armas, estamos, nesta 2ª década do século XXI, numa
guerra psicológica igualmente mortífera e deprimente – e entre uma e outra, que
venha o diabo e que escolha! De uma forma eufemística, dir-se-ia, põe-se, na
verdade, o dedo no fundo da ferida: «a solidão dos corpos encontrados meses
depois da morte»… O paradigma mortalmente economicista da política europeia (todos
o dizem, todos o sabem, excepto aqueles que têm de fingir que não sabem,
coitados deles!...) leva precisamente a situações idênticas às que a peça de
Kesselring escalpeliza – e muitas mais serão do que nós imaginamos!...
Ser bonzinho
Que
as duas velhinhas simpáticas se limitam, no fim de contas, a aceitar como
hóspedes velhinhos que não têm onde cair mortos, que ora peregrinam sozinhos
por este mundo, sem eira nem beira, e cuja vida, por isso, já não tem qualquer
objectivo. «Vai uma bebidinha, Amigo? À nossa saúde!». E a cave vai-se enchendo
de cadáveres, honrosamente sepultados como mandam as regras, as senhoras
vestidas de preto da cabeça aos pés, as orações e… venha outro!
Um sobrinho também enveredou pelo
mesmo caminho, para sanear o mundo dos seres inúteis e perversos. Com mais
requinte, em jeito de cirurgia plástica…
E tudo se embrulha por ali, uma vez
que até gozam da cumplicidade de um outro sobrinho louco, que se toma por
presidente dos Estados Unidos e está, por isso, sempre a sonhar com guerras,
inimigos e mortos!
Não são todos uns queridos?... Não
são todos, afinal, uns benfeitores dignos, até, de pública condecoração ? Não livram os políticos de uma série de
empecilhos?
Comédia macabra, sim, que nos
arranca gostosas gargalhadas pelo inesperado das situações e pelo à-vontade com
que se tratam assuntos de uma seriedade imensa. E não é que, tal como nesses primórdios
da II Grande Guerra, nós precisamos mesmo de rir? E a bandeiras despregadas,
claro! Para ver se, tal como antigamente se dizia, «é a rir que se castigam os
costumes»!
A peça de teatro
«Arsénico
e Rendas Velhas» esteve em cena até ao dia 29. Faz-se agora uma pausa, devido à
reposição , agora no Teatro Nacional
D. Maria II, de «O Comboio da Madrugada», com Eunice Muñoz (como se sabe) na
protagonista, acompanhada por outros elementos da Companhia que necessitam de
ser substituídos. Voltará, pois, ao palco do Mirita Casimiro de 15 de Maio a 15
de Junho – e é peça a não perder, justamente pelo anátema que implicitamente
lança aos tristes tempos em que vivemos, como se tivéssemos culpa dos progressos
da Medicina em prol da longevidade. Culpas teremos, porém, se continuarmos a
não levantar a voz contra o egoísmo dos que abandonam velhos em casebres por
essas aldeias perdidas ou num lar que nunca mais visitam ou num hospital de que
aparentemente esqueceram nome e localização …
Se fez bem Carlos Avidez em a trazer
a público agora? Claro que fez! E para os estudantes da Escola de Teatro, que
se sentaram por terra à beira do palco no dia da estreia, terá sido mais uma aprendizagem.
Não apenas porque estava em palco a maioria dos seus professores, mas também
porque, no fundo, algo da lição lhes
terá ficado no subconsciente.
Rimo-nos muito. Aquela serenidade
seráfica de Anna Paula; aquele desvario de António Pedro Cerdeira, crítico de
teatro que não sabe para onde se há-de virar e até quase não distingue já o
teatro-espectáculo do teatro-vida (saúda-se vivamente o seu regresso!); aquele
ar de inocente de António Marques, na ridícula figura austera do cirurgião
alemão, Doutor Einstein, pois então! Ai, os fornos crematórios!...); as
loucuras imprevisíveis de João Pedro Jesus, a incarnar George W. Bush
(presidente dos EUA…); a ardência apaixonada de Rita Cabaço – tudo são bons
pretextos para rir. Mas é, no fundo, repita-se, um rir para não chorar!
Interpretações de muito bom nível;
cenário singelo a servir plenamente o que se pretende; ‘banda sonora’ a
condizer… Realce, ainda, para a exposição de fotografias no ‘foyer’, da autoria
de Alfredo Carvalho.
Mais uma vez, os maiores aplausos!
[Publicado no Jornal de Cascais, nº 312, 02.05.2012,
p. 4].
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