quarta-feira, 22 de março de 2017

Carteiros-autómatos? – Não, obrigado!

             «‒ Aí vem o homem, Sr. Pertunhas; aí vem, Graças a Deus que aí vem! ‒ diziam todos à uma.
            O funcionário principiou a impacientar-se.
            ‒ Então! Então! Por onde há-de ele entrar, fazem favor de me dizer? Saiam, saiam. Não ouvem? Então não fazem caso das minhas ordens? Dêem lugar. Não vêem que estão molestando este senhor?».
            É passagem por de mais conhecida d’A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis. A chegada do carteiro por que todos ansiavam. «Hoje então, que chegam as cartas do Brasil, ninguém pára com este povo» ‒ comentara Bento Pertunhas para Henrique, recém-chegado a Alvapenha. «Há, de facto, poucas cenas tão animadas como a da chegada do correio e das distribuição das cartas em uma terra pequena», comenta, mais adiante, Júlio Dinis, que não hesitou em contar a cena da Joana Pedrosa, de Serzedo:
            «‒ Aqui estou; será do meu António, senhor? disse uma velha, pobremente vestida.
            Será do seu António será respondeu o insensível funcionário ; o que lhe posso dizer é que traz obreia preta.
            A mulher, que tremia ao receber a carta, deixou-a cair, ouvindo aquelas sinistras palavras. Apanharam-lha; e ela, tomando-a, saiu da loja, a chorar lastimosamente
            Não sei se ainda assim é; mas lembro-me de que, um dia, ao ir ao Lar das Fisgas, havia um grupo de utentes à porta. Compreendi depois: estava na hora de chegar a carrinha dos Correios. E relembrei também, nessa altura, a cena d’A Morgadinha, que, confesso, lida quando eu ainda era adolescente, jamais esqueci.

E porque me recordei dela, agora?
            Pelo contraste que sinto – embora, como também já dizia Júlio Dinis, «nas grandes cidades dispersam-se estas comoções; passam-se no recato dos gabinetes de cada um». Mas… passam-se! Que alegria temos hoje, ao receber uma carta manuscrita, quando já nos habituámos à pressa atabalhoada do correio electrónico, que por vezes nem «assunto» traz!... Que ternura sentimos por quem disponibilizou um pouco mais do seu tempo a escrever-nos à mão? Até o abraço ou o beijinho aposto no final sabem melhor que a estereotipia do «beijinhos!» que hoje se atira a torto e a direito, amiúde sem se pensar bem no que o beijinho significa!...
            Respondi recentemente, por escrito, a um inquérito dos CTT; e, como sou cliente do balcão da Pampilheira, marquei praticamente tudo com «excelente», porque é verdade – e sou dos que vai aos correios praticamente todos os dias e todos os dias recebo correspondência.
            Aconteceram-me, porém, quatro cenas que não resisto a contar, porque nada de bom – a meu ver – já indiciam.
            Primeira: as queixas de gentes de Janes e Malveira, onde (disseram-me) a correspondência se perde por caixas alheias.
            Segunda: o ter apanhado na minha caixa de correio, não apenas a correspondência para mim mas também a de dois dos meus vizinhos (e não era a primeira vez).
            Terceira: o de ter enviado uma carta para a direcção da revista do Arquivo Municipal de Loulé, que tem o curioso nome de Al’ulyã, e ela me ter sido devolvida por o destinatário ser «desconhecido».
            Quarta: o de ter remetido, a 27 de Fevereiro, um embrulho para o Centro de Documentação 25 de Abril, em Coimbra, que me foi devolvido, a 7 de Março, porque o destinatário… «mudou-se»!
O destinatário... mudou-se! Mas sabe-se para onde se mudou!
            Explico a 1ª e a 2ª por estarem os CTT, agora privatizados, a utilizar jovens do Fundo de Desemprego, sem que lhe seja dada a necessária formação. Explico a 3ª por o carteiro de Loulé – e o respectivo chefe do Centro de Distribuição Postal – não terem ainda a cultura suficiente, para saberem que existe na sua terra uma revista cultural, editada pelo Arquivo Municipal, e que já vai no seu 16º ano de existência. É pena!
            Explico a 4ª, porque o Centro saiu dessas instalações há algum tempo, mas tem papel à porta a dizer onde agora está.
            Portanto, no que se refere à 3ª e à 4ª cenas, das duas uma: ou há uma ordem superior para que se proceda à devolução nessas circunstâncias ou entrámos definitivamente na era do automatismo despersonalizado, muito longe, por conseguinte, da cena d’A Morgadinha, e não existe aquele sentimento de que ali vai uma mensagem pessoal, por que porventura alguém há muito espera e que vale a pena tentar fazer chegar ao destino, evitando até mais despesas, tanto da empresa como dos utentes.
            Por isso eu digo: senhores, carteiros-autómatos não, obrigado!
                                  
                                               José d’Encarnação
 
            Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 179, 22-03-2017, p. 6.

 

10 comentários:

  1. Ana Salgado 23/3 às 0:32
    E também é Júlio Dinis que diz: «Nas grandes cidades dispersam-se estas comoções; passam-se no recato dos gabinetes de cada um. Lembrem-se porém das vezes, em que têm segurado com mão trémula na correspondência, que o correio lhes traz; no ansiar do coração com que lhe rasgam o selo; nas lágrimas ou sorrisos com que lhe interrompem a leitura; no irresistível movimento de desespero, com que a amarrotam depois, ou nas expansões apaixonadas com que beijaram o nome que as subscreve; lembrem-se disso, multipliquem depois esses factos, todos; despojem-nos das reservas que a etiqueta impõe às classes mais civilizadas; façam-nos manifestarem-se num mesmo momento e num mesmo lugar, e digam se concebem muitas outras cenas, em que mais sentimentos e paixões se agitem em luta travada.» Tudo se perde... ou tudo se transforma?

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  2. Ana Salgado 23/3 às 1:29
    Eu tenho um apreço especial pelo género epistolar. Ando a ler, curiosamente, as cartas de Júlio Dinis. Devorei, por exemplo, as de Camilo. Sempre que termino estas leituras, sinto uma certa nostalgia. Durante anos, cultivei o ritual das cartas manuscritas, sobretudo com um dos meus tios, uma senhora prima da minha mãe e com o meu irmão mais velho enquanto se doutorava em Gales. Cheguei a corresponder-me, por carta, com um amigo de Lisboa. Hoje ainda nos rimos com isso. Lembro-me de passar uma temporada em Gales e a alegria do dia era a de ouvir as cartas a cair no chão. Eu corria para as apanhar, e não eram contas para pagar ou publicidade, eram notícias da família e do namoradito. Eu devia ter nascido noutra época. Adoro tecnologia (e também gosto de alguns emails que recebo), mas sinto uma certa nostalgia de... outros tempos. E já pareço uma velhinha...

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  3. Jose Martins Colaço 23/3 às 10:37
    José d'Encarnação, digo-te que um e-mail não transmite a saudade que uma carta transporta. Concordas?
    Comentário meu: claro que concordo! Sente-se mais a pessoa que nos escreve a não a impessoalidade das teclas!

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  4. Boa Tarde
    Sempre que leio ou ouço estes queixumes pergunto, quando fui a última vez que escreveu a alguém?
    Maria Helena

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    1. Essa, de facto, uma boa pergunta. Eu sei responder pela afirmativa; no entanto, acredito que muitos dos nossos amigos terão dificuldade em responder, mormente se estiverem a pensar em correspondência enviada por via postal.

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  5. Rogerio Cardoso 27/3 às 9:51
    Os próprios CTT estão a contribuir para o decréscimo das chamadas cartas, senão vejamos: antigamente, todos os dias havia o chamado carteiro, esperado pelo menos pelos mais velhos, a figura amiga que durante anos trazia as cartas, boas e más, mas era um momento de meia dúzia de palavras sempre interessantes. Presentemente, e depois de eu estranhar a ausência da entrega de correspondência durante alguns dias, perguntei o motivo e obtive a seguinte resposta: as cartas chamadas normais são entregues com intervalos de 2 e 3 dias, porque não existe pessoal, as cartas registadas, essas sim, são entregues rapidamente. Depois, os funcionários, os por nós chamados carteiros, mudam constantemente de local de trabalho, o que implica o não conhecimento dos destinatários, e a devolução das cartas, caso a morada não venha 100% correcta. É o que se passa presentemente e que deveria ser corrigido, para retomar a velha tradição do "Bom dia, senhor carteiro, tem alguma coisa para mim?"

    O meu comentário: É exactamente isso que se passa, amigo Rogério. E contra isso deveríamos lutar! O correio é - deveria ser! - um serviço público! - J. d'E.

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  6. Ana Teresa 23/3 às 11:42
    Olá, Professor! Estou inteiramente de acordo, e como eu ouço queixas no meu local de trabalho de pessoas que não recebem correspondência, dizendo-me os mais variados motivos. Eu penso o mesmo em relação à chamada telefónica trocada muitas vezes por SMS. Costumo dizer que quando verdadeiramente se quer transmitir algum recado ou felicitar por qualquer motivo alguém, se telefona e não se envia SMS. Beijinho verdadeiro, Professor!

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  7. Ana Teresa 28/3 às 13:59
    Penso que os CTT foram privatizados, certo? Será essa a razão? Poder-se-ia fazer uma exposição que nós assinaríamos?

    José d'Encarnação:
    A privatização pode estar na origem da redução de custos e da consequente diminuição de carteiros, com as consequências de que atrás fala Rogério Cardoso. O meu texto poderá ser uma primeira exposição; vamos ver se há resposta e se o procedimento melhora; se continuar a piorar, sim, e sobretudo se começar a haver casos em que o atraso na entrega prejudica as pessoas por estarem ultrapassados os prazos pedidos, teremos de pensar numa atitude pública mais... 'drástica'.

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  8. Edgar Valdez 23/3 às 22:48

    Gosto de receber cartas e retribuí-las. Tenho um problema, pois continuo a escrever com a ortografia com que aprendi e ainda não consegui «assimilar» o novo acordo. Não sei se vou ser penalizado por isso. Os meus amigos que o digam após receberem as mensagens que lhes envio. Um abraço.

    Comentário meu: Penalizado, por que carga d'água? Ainda estamos para ver se esse «acordo» vai avante...

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  9. João Francisco Alcaide 23/3 às 19:13
    O ditado diz que enquanto o pai vai e vem, folgam as costas. Neste caso, enquanto a carta vai e vem, vendem-se mais uns selos... Cumprimentos.

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