Cruzo-me
constantemente com pessoas, de todas as idades, que estão longe do caminho que
levam. De auscultadores nos ouvidos, vivem seguramente num outro mundo, o das
suas melodias preferidas ou o de afastadas vozes que assim se lhes tornam
presentes. Um outro mundo – e não aquele da calçada que pisam, do gritar
assustado do melro ou do embater das ondas nas rochas…
Outro
mundo, esse, o do som das aves ou do incessante murmúrio do mar. Mundo real,
dos seres vivos, das pessoas… E esse é o do Poeta ou do Escritor, que insiste
em fazer parte da comunidade em que vive, do lugar onde habita, do chão que
pisa.
António
Salvado apresenta-se-nos como esse alguém capaz de adoptar a sugestão que o
filósofo romano Séneca deu a Lucílio (Ad Lucilium Epistulae Morales – 95, 53):
«Ille
versus et in pectore et in ore sit homo sum humani nihil a me alienum puto».
«Que
esteja no coração e na boca aquele
verso que diz: «Sou homem e nada do que é humano eu considero alheio a mim!».
Ouso,
por isso, chamar-lhe um escritor compulsivo, porque certamente pratica também
aqueloutra sugestão que Plínio-o-Velho (Naturalis Historia,
35) atribuiu a Apeles, o celebrado pintor: «Nulla dies sine linea», que em
nenhum dia o Sol se ponha sem que tu tenhas escrito uma linha só que seja!
Cumpre,
pois, de quando em quando, dar conta do que o compulsivo escritor nos vem
legando.
Reflexões sobre os museus
Tendo sido,
durante anos, director-conservador do Museu de Francisco Tavares Proença Júnior,
dele editou a Sociedade dos Amigos desse Museu o livrinho Museu e Comunidade & Outros Textos, acabado de paginar, lê-se
numa das badanas, «no dia 11 de Dezembro de 2018, dia do papa São Dâmaso, poeta
e padroeiro dos arqueólogos que a tradição
afirma ter nascido em Idanha-a-Velha».
A
apresentação, oportuna e erudita, é
de Luís Raposo, que dirigiu o Museu Nacional de Arqueologia. «Museu e
Comunidade», de 1977, proclama a necessária relação
das instituições museológicas com o ambiente em que existem. António Salvado
insiste na necessidade da «salvaguarda dos valores que definem o vasto
património da cultura comunitária, regional». E, num momento em que – é o
escritor um visionário, por vezes! – a escola-oficina dos tradicionais bordados
de Castelo Branco foi extinta no museu, o que se destaca é «a chamada arte
artesanal». Aquela ‘ciência’ que o saber ancestral foi condimentando e à qual
importa voltar.
Segue-se
o texto de uma ‘conversa’ de 1989 (gostaríamos de saber em que circunstâncias ocorreu,
mas o Autor parece resistir a contextos cronológicos e geográficos…). Chamou-lhe,
mui sugestivamente, «Museu lição de
coisas», porque os objectos expostos, se devidamente integrados no ‘mundo’ que
os viu nascer, assumem-se lições de vida!
«Por
um museu etnológico da Beira Baixa» é de 1983 e mantém a sua actualidade na
proclamação da região como um todo
diversificado que importa, afinal, preservar na sua diversificação autêntica.
Para que se não olvide…
Essas reflexões do
Homem e do Poeta, semeadas aqui e além, ao longo de já longo percurso, vão, mui
judiciosamente, sendo passadas a livro. Cito dois.
–
Sirgo II, datado de finais de 2018,
reúne, como se anota em subtítulo, «Quatro títulos esgotados de poemas em prosa
e poemas dispersos por outros títulos esgotados». Mais de 170 páginas, edição e propriedade do Instituto Politécnico de Castelo
Branco (ISBN 978-989-8196-75-0). E os esgotados são «Malva», de 1995; «Largas
vias», de 2000; «Ravinas», de 2004; «Modulações», de 2005. E os dispersos aqui
reunidos atingem a bonita soma de 70!... Difícil comentar. São ecos d’alma ao
longo «da vereda semi-perdida», em que o Poeta procura o seu lugar, na ânsia de
um ripanço «azul sobre a cabeça e cabeça sob os pés» (p. 164).
–
Poemas d’”O Pequeno Lugar” constitui,
por seu turno, nas suas escassas 40 páginas, em edição
(deste ano de 2019) da Associação
Cultural chamada precisamente «O Pequeno Lugar», o oposto ao alheamento que eu
anotava nas considerações iniciais: os textos, breves, comentam (dir-se-ia) as
mui sugestivas fotografias de Marco Nunes, a chamar a atenção para as falas simples das humildes casas de xisto
e o rumorejar das águas simples da ribeirinha... Tem razão o Poeta: aí, ‘um dia
qualquer’, cansado da diáspora e de ‘missão cumprida’, o Homem regressará. E
verá tudo com um outro olhar, sereno, sem se preocupar com os relógios…
José d’Encarnação
Um lindo texto-homenagem, por assim dizer, a um grande Poeta que venho seguindo ao longo dos anos. António Salvado é um dos maiores na Literatura portuguesa, criando beleza no silêncio.
ResponderEliminarMadalena