quarta-feira, 24 de julho de 2019

Livros, livros, livros!


             Dizem que se escreve pouco. Eu afirmaria, antes, que pouco se lê desses livros que se palpam e podem acariciar-se, onde se sublinham as palavras mais significativas para cada um de nós ou, até, se fazem anotações à margem. Recordo como é aliciante ‘sentir’ que aquela página foi lida pelo investigador José Leite de Vasconcelos, porque escreveu ao lado uma sábia observação, a lápis.
            Procuro sempre ler de lápis na mão, se o livro é meu. Mais tarde, ao folheá-lo, há essas frases sublinhadas que me saltam mais à vista e paro a fim de as reler e lembrar-me da razão pela qual essa passagem, há anos, me pareceu ser de interesse.

             
             Há mesmo um vídeo que guardo e não sei como o hei-de propagandear, porque não fiquei com os dados. Tem por título «book», apesar de a versão que eu tenho estar vertida para castelhano e quem o procura ‘impingir’ – como se fosse um daqueles produtos-maravilha publicitados na hora dos telejornais, ligue agora, que terá 10% de desconto e ainda lhe oferecemos uma almofada!... – esse, o senhor do anúncio, muito sério, lá vai dizendo que é sua intenção falar-nos de um «novo dispositivo de conhecimento bio-óptico organizado», que representa «uma revolucionária ruptura tecnológica», porque é portátil, não usa bateria, não carece de cabos nem de fios e, ainda por cima, trabalha sem rede… O tal «book»!
            Todos augurámos, um dia, escrever um livro. Mesmo os que, durante antes, escrevemos crónicas em jornais e até gostávamos que um mecenas nos batesse à porta, disposto a arcar com as despesas da edição. Não deixa de ter piada ver uma das nossas crónicas a servir de embrulho para a dúzia de castanhas assadas. Certo é, todavia, que, depois, a folha do jornal ou vai para o papelão (na melhor das hipóteses) ou pode, até, ser a escolhida para pôr no chão, uma vez que o canito lá de casa até manifesta especial predilecção por deixar presentes em folhas de jornal…
            Bem andou, por exemplo, o nosso amigo João Lourenço Roque, distinto catedrático que, aposentado, decidiu largar as delícias urbanas de uma Lusa Atenas e foi refugiar-se em Calvos, recôndita aldeia da freguesia de Sarzedas. Daí observa o mundo, as gentes, e sobre tudo vai escrevendo crónicas que reuniu em «Digressões Interiores» 1 e 2 (esta com os textos publicados de 2011 a 2017), donde extraio a sua confissão de ter, entre outros, «o vício da escrita aos farrapos, quantas vezes farrapos da minha própria vida» (p. 114), uma escrita que ele tem em jeito de conversa com a pessoa amada – e nunca se descose a dizer quem ela é, se amor platónico ou real: «Ainda não sei o que os teus olhos diziam» (p. 128). Nós sabemos, porém, o que, observando horizontes, pela escrita os seus olhos nos dizem. Sublinhamos esta e aquela passagem – e ficamos enriquecidos…

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 758, 2019-07-15, p. 12.

1 comentário:

  1. Parabéns pelo belo texto. Essa do canito preferir a folha de jornal para deixar os presentes, traz-me à ideia a singular exigência de um menino, filho de uma senhora que trabalhava lá em casa. Tinha aversão a sanitas e até a bacios, vá-se lá saber por quê...de modo que exigia uma taça de papel consistente que lhe assegurasse a rotina sem acidentes...Sem acidentes para ele, porque um dia foi trucidado um livro, à socapa, à falta de outro papel da mesma qualidade. Um abração

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