quarta-feira, 24 de junho de 2020

À (re)descoberta

               O confinamento tem aspectos positivos. Amiúde se ouve que deu para se arrumarem gavetas, prateleiras, se deitar fora quanto se acumulara e se verificara, agora, não ter qualquer interesse guardar. Partilham-se – além de centenas de mensagens, vídeos, fotografias, cartoons, um nunca mais acabar! – objectos, roupas que já não servem... E, sobretudo, os que podem partilham alimentos, que a fome bate à porta de muito mais gente do que se poderia supor, mormente da chamada «classe média» que vive apenas do seu ordenado e tem encargos financeiros apreciáveis.
            Quem os tem – garagem ou sótão – decerto por lá passa algum tempo, nessas arrumações. E isso me faz sempre lembrar uma passagem da 4ª carta de D. José Policarpo a Eduardo Prado Coelho, no Diário de Notícias (2003):
            «Muitos de nós fizemos já a experiência de tentar arrumar os sótãos das velhas casas de família, onde as memórias se acumulam, significando que alguém se recusou a deitá-las fora. Um dia meti-me nisso, a arrumar o sótão da nossa casa de família. Numa atitude um pouco iconoclasta, resolvi excluir daquela tradição um conjunto de elementos que amontoei, à espera de as conduzir para o lixo. Nessa tarde chegaram outros dos meus irmãos e, sobretudo, os meus sobrinhos, então crianças e adolescentes. Ficaram indignados, vasculharam minuciosamente o meu amontoado de «lixo» e recuperaram a maior parte das peças rejeitadas.»
            Decerto, houve essa experiência nossa também.
            E redescobrimos o que está à nossa volta. Os vizinhos, que passámos a cumprimentar, pois o vírus nos ensinou a sentirmo-nos mais próximos uns dos outros, ainda que mantendo o distanciamento prescrito. As ciclovias. Os passeios pedonais. Os espaços verdes.
            Um destes dias, fui de abalada pela orla de Cascais ao Guincho. Um mar de gente, a andar de bicicleta, a caminhar, a sentar-se nos bancos estrategicamente colocados ao longo desse percurso.
            Não saí muito, como era de lei; mas penso que as várias zonas do concelho onde se criaram espaços de lazer acabaram por ser bem frequentadas, não apenas para passear o cão (ou passear com ele) mas para apreciar tudo aquilo com que esta magnífica Primavera despoluída nos quis brindar.
            Confinado e obediente, apenas me desloquei pelos arredores de casa: um trecho do vale do Rio dos Mochos, o vale do Ribeiro do Cobre, o Parque da Pampilheira (que é para carros, mas que ora mui poucos tem e regurgita de passarada logo pela manhãzinha) e, de modo especial, todo o espaço ajardinado entre a Rotunda dos Bombeiros e a Rua de Santana. Desse troço final da Av. Raul Solnado (o nome ainda não foi posto na placa, mas será esse, decerto, em continuação da Avenida que vem do Bairro do Rosário, 2ª circular), as bermas encheram-se de flores (papoilas vermelhas e brancas, cardos de filamentosas pétalas lilases, malmequeres…), em colorida sinfonia.
O espaço verde que substituiu prédios abandonados...
A madressilva, que viceja airosa e perfumada!...
O rosmaninho, que nunca pensou estar tão florido e bem cuidado!...
E o alecrim, bem cheiroso também, pronto para alegrar o ambiente!...
            Por outro lado, aquela entrada na Avenida Amaro da Costa, um mimo! Bendita topiaria (essa arte!) que se lembrou de bancos de pedra, de rosmaninho, alecrim, madressilvas, oliveiras, ciprestes, pinheiros mansos… E foram dezenas por dia, garanto, os vizinhos que por ali se passearam e até pararam para uns exercícios de ginástica, respirando um ar que os escapes dos escassos automóveis não lograram contaminar.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 323, 2020-06-24, p. 6.

2 comentários:

  1. Mais um belo texto. À (re) Descoberta de novos espaços, ou dos mesmos ambientes agora renovados, que sempre nos rodearam e nunca saudámos com um olhar contemplativo. Que bom haver quem esteja atento e nos chame a atenção.

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