O
confinamento tem aspectos positivos. Amiúde se ouve que deu para se arrumarem
gavetas, prateleiras, se deitar fora quanto se acumulara e se verificara,
agora, não ter qualquer interesse guardar. Partilham-se – além de centenas de
mensagens, vídeos, fotografias, cartoons,
um nunca mais acabar! – objectos, roupas que já não servem... E, sobretudo,
os que podem partilham alimentos, que a fome bate à porta de muito mais gente
do que se poderia supor, mormente da chamada «classe média» que vive apenas do
seu ordenado e tem encargos financeiros apreciáveis.
Quem
os tem – garagem ou sótão – decerto por lá passa algum tempo, nessas
arrumações. E isso me faz sempre lembrar uma passagem da
4ª carta de D. José Policarpo a Eduardo Prado Coelho, no Diário de Notícias (2003):
Decerto,
houve essa experiência nossa também.
E
redescobrimos o que está à nossa volta. Os vizinhos, que passámos a
cumprimentar, pois o vírus nos ensinou a sentirmo-nos mais próximos uns dos outros,
ainda que mantendo o distanciamento prescrito. As ciclovias. Os passeios
pedonais. Os espaços verdes.
Um
destes dias, fui de abalada pela orla de Cascais ao Guincho. Um mar de gente, a
andar de bicicleta, a caminhar, a sentar-se nos bancos estrategicamente colocados
ao longo desse percurso.
Não
saí muito, como era de lei; mas penso que as várias zonas do concelho onde se
criaram espaços de lazer acabaram por ser bem frequentadas, não apenas para
passear o cão (ou passear com ele) mas para apreciar tudo aquilo com que esta magnífica
Primavera despoluída nos quis brindar.
Confinado
e obediente, apenas me desloquei pelos arredores de casa: um trecho do vale do Rio
dos Mochos, o vale do Ribeiro do Cobre, o Parque da Pampilheira (que é para
carros, mas que ora mui poucos tem e regurgita de passarada logo pela
manhãzinha) e, de modo especial, todo o espaço ajardinado entre a Rotunda dos
Bombeiros e a Rua de Santana. Desse troço final da Av. Raul Solnado (o nome
ainda não foi posto na placa, mas será esse, decerto, em continuação da Avenida que vem do Bairro do Rosário, 2ª
circular), as bermas encheram-se de flores (papoilas vermelhas e brancas,
cardos de filamentosas pétalas lilases, malmequeres…), em colorida sinfonia.
O espaço verde que substituiu prédios abandonados... |
A madressilva, que viceja airosa e perfumada!... |
O rosmaninho, que nunca pensou estar tão florido e bem cuidado!... |
E o alecrim, bem cheiroso também, pronto para alegrar o ambiente!... |
Por
outro lado, aquela entrada na Avenida Amaro da Costa, um mimo! Bendita topiaria
(essa arte!) que se lembrou de bancos de pedra, de rosmaninho, alecrim,
madressilvas, oliveiras, ciprestes, pinheiros
mansos… E foram dezenas por dia, garanto, os vizinhos que por ali se passearam
e até pararam para uns exercícios de ginástica, respirando um ar que os escapes
dos escassos automóveis não lograram contaminar.
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 323, 2020-06-24, p. 6.
Mais um belo texto. À (re) Descoberta de novos espaços, ou dos mesmos ambientes agora renovados, que sempre nos rodearam e nunca saudámos com um olhar contemplativo. Que bom haver quem esteja atento e nos chame a atenção.
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