quinta-feira, 18 de junho de 2020

«O Menino Jesus parecia uma trouxa de ovos»

             Como historiador – ensinaram-me os Mestres – devo respeitar as mentalidades e procurar identificar, em cada época, quais os usos e costumes, compreendê-los e explicá-los.
            No tempo dos Romanos, o escravo até podia exercer funções importantes como a de villicus (o caseiro da herdade, diríamos hoje), médico, professor… E com o pecúlio que angariasse podia facilmente comprar a sua liberdade. Aquando dos Descobrimentos, houve a mão-de-obra escrava, nas condições que se conhecem. A escravatura do século XXI tem outras versatilidades – oh! se tem!... Compra-se e vende-se por milhões! Paga o escravo para ser metido num escaler, na esperança de que a Sorte o proteja!...
            Assim, a Arte. Carece de ser integrada no tempo que a viu nascer, eco – como é – de íntimas pulsões, mensagens de ternura e de revolta, de intervenção crítica ou de apaziguamento…
            Daí que eu tenha puxado a título a opinião exarada pelo conceituado Miguel Torga, quando visitou, a 30 de Maio de 1949, uma exposição no Museu Nacional de Arte Antiga:
            «Visita à Josefa de Óbidos, que recebe durante alguns dias numa das salas das Janelas Verdes. Grande e penosa desilusão! A senhora fazia crochet com os pincéis. Que falta de imaginação, que miséria de desenho, que geleia, tudo aquilo! […] Enquanto um baboso se extasiava diante dum menino Jesus rechonchudo, que parecia uma trouxa de ovos, raspei-me.
            Raça de portugueses que não dá um pintor que se aproveite!» (Diário V, Coimbra, 1951, p. 23-24).
            Compreende-se a frase de Miguel Torga, na época em que a escreveu, de acordo com a sua mentalidade na altura. Perante a obra de arte, a primeira reacção é sempre emotiva: gosta-se ou não se gosta; transmite-nos uma mensagem de beleza ou não. Vem depois a repulsa ou a tentativa de compreensão, de enquadramento na época. A Beleza é eterna; a sua apreensão, subjectiva – não fora verdadeiro o adágio «quem o feio ama bonito lhe parece»!

            Caso a pandemia não nos houvesse atacado, estaríamos hoje a admirar em Cascais a obra religiosa de Josefa de Óbidos (1630-1684), porque a Fundação D. Luís I programara essa exposição para Junho. Fica adiada para inaugurar a 8 de Dezembro; mas valerá a pena dedicar-lhe desde já algumas linhas, mais não fosse porque quem vai à matriz de Cascais lá pode admirar oito dos quadros mais famosos da artista: Seis evocam cenas da vida de Santa Teresa d’Ávila, «A transverberação de Santa Teresa», de 1673, por exemplo; os outros dois são: «A Sagrada Família», de 1672, e «O Menino Jesus Salvador do Mundo».
            Segundo Vítor Serrão, as telas da matriz cascalense terão procedido do extinto Convento dos Frades Carmelitas de Santa Teresa de Jesus; segundo outros, poderão ter sido pintadas para o vizinho Convento dos Carmelitas Descalços de Nossa Senhora da Piedade (actual Centro Cultural de Cascais)! Seja como for, para um ambiente religioso, sereno, de reencontro com imagens envoltas num halo sagrado. Veja-se esta Nossa Senhora de Menino ao colo. Atente-se no gracioso pormenor do jorro de leite do úbere seio nu de Maria para a boca do Menino!...
            Podem discutir-se a técnica pictórica usada; os cânones artísticos que a pintora seguiu; o concreto realismo da figuração ou o seu carácter simbólico… Mas, no fundo, o mais importante não é pararmos uns instantes a admirar uma obra de arte?
            Fica a admiração aprazada para Dezembro na Casa das Histórias Paula Rego!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em https://duaslinhas.pt/?p=1225, a 17-06-2020.

2 comentários:

  1. Começo por agradecer o texto, elaborado com a costumada sapiência e uma nota de humor. O desabafo de Miguel Torga, que eu já conhecia do Diário V, é frontal e fez-me rir, de novo. Não gostou...nem todos podemos gostar do mesmo género de pintura. E talvez estivesse em dia não, porque tendo-o conhecido, sei que era um cavalheiro. Eu também não aprecio Josefa de Óbidos. E mesmo enquadrando o seu trabalho no século XVII, na temática dominante, a tela daquela Nossa Senhora a jorrar leite, é muito ousada... Mas concordo com o cronista: mais importante que tudo é apreciar obras de arte. E quando a exposição estiver disponível em Cascais, vamos todos apreciar e discutir sobre o tema. Belo texto.

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  2. Observar, analisar, compreender, integrar na sua época, assim deve ser...mas também não aprecio a nossa Josefa, a não ser nos seus cestos de doces, esses sim são saborosos (ambos)

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