Ao
referir-se, em anterior apontamento, a criação
da «Iniciativa Patriótica da Instituição Memorativa do Regimento de Infantaria nº 19 de
Cascaes…», anotava-se ser «história digna de se contar» a grande preocupação manifestada em alojar a população necessitada, condigna e até gratuitamente, em
colónias de casas económicas.
O documento, datado de 1906, em que
se dá conta das diligências a fazer nesse sentido refere, dentro do espírito
‘racionalista’ vigente, «as nefandas condições de miséria e
insalubridade das habitações cubiculares de centenas de locais de Lisboa,
chamados ‘pátios’, onde habitam milhares de indivíduos de ambos os sexos,
válidos, valetudinários e menores, da mais obscura, miseranda, e desprezada
classe da população urbana». Para
tais males remediar, a Iniciativa Patriótica propunha-se levar a cabo, com o
apoio de todos, a «edificação de colónias
prediais económicas, administrativamente zeladas, e intencionalmente
beneficiadoras do proletariado embrutecido, e da vegetabilidade humana
miseranda; moralizadoras da família, e educadoras da prole; luminosos
vestíbulos da civilização, por onde
o baixo povo entre seguramente na carreira do trabalho honroso e utilitário».
Não
conseguiu os seus intentos, mas a ideia das colónias manteve-se. Assim, em
Cascais, mais tarde e por iniciativa do benemérito Conde de Monte Real, inauguraram-se,
a 12 de Março de 1933, as primeiras 12 casas do Bairro Operário José Luís
(Monte Real). Orgulhava-se a Comissão Administrativa municipal de terem «todas
elas dois pequenos quintais, água encanada e casa de banho, devidamente
apetrechada com W. C., tina e chuveiro». E escreve-se «as primeiras», porque o
empreendimento – que se estenderia por todo o espaço hoje ocupado pela
Pampilheira oriental (2160 x 100
metros) – previa mais de 200 fogos, com amplo largo a
meio, uma escola, duas lavandarias, dois parques infantis, edifício de caldeiras,
biblioteca e cooperativa. Desse bairro restam hoje 9 casas, à espera de demolição, entre o Hospital CUF Cascais e o Largo dos
Bombeiros Voluntários.
Completamente
demolido foi o Bairro de S. José da Bicuda, construído em 1944 por iniciativa
do benemérito Joaquim Nunes Ereira («Ereira» porque viera da Ereira, aldeia do
concelho do Cartaxo). Destinou-o aos trabalhadores da quinta, mas, para além
dos requisitos próprios de uma habitação
condigna e de estruturas comunitárias (a igreja, a escola, a casa da malta, o
poço), cada família dispunha, de um jardim, à frente; no pinhal próximo, um
espaço para capoeiras; e de um talhão de terreno para horta.
Compreendia-se
quão importante era cada família poder gerir a sua auto-subsistência e
continuar agarrada à produção
agrícola, não apenas por uma questão meramente económica, mas porque se
encarava a vida no seu todo e sabia-se que o contacto com a terra, a ocupação da mente com as culturas era uma forma de se
viver melhor. ¿Não foi também esse o objectivo fixado quando, nos primórdios da
década de 80, se pensou, um pouco por toda a Europa e também em Lisboa e
arredores, na criação de «hortas
comunitárias»? ¿Não foi essa, mais recentemente, a aspiração
dos moradores do Bairro Chesol, na Aldeia de Juzo, ao pugnarem por esse espaço
comunitário inaugurado, com pompa e circunstância, a 9 de Abril de 2016?
Confesso
que o incentivo para trocarmos impressões sobre este tema me surgiu da
humanitária intenção da Iniciativa
Patriótica e também porque um colega teve a gentileza de me enviar o postal que
ilustra esta crónica. Integra uma colecção
de postais turísticos editada pela conhecida Casa Tomaz, Lda. A minha admiração prende-se com a escolha: ¿poderíamos lá hoje
pensar em considerar ‘turístico’, digno de ser plasmado em bilhete postal, o panorama que, seguramente do alto do Hospital dos Condes
de Castro Guimarães, se via para norte, a mostrar o Bairro dos Pescadores e o
Bairro das Caixas de Previdência, tendo, ao fundo, a Serra de Sintra com o seu
habitual barrão estival?
Não
estarei longe da verdade se apontar como razão o orgulho que a população tivera, nessa década de 50 – salvo o erro, me
dirão se errei na data –, ao ver construído um bairro de casas térreas,
especificamente destinado para as gentes ligadas à tradicional faina piscatória
e, mais acima, lotes (estes já em altura) para os trabalhadores abrangidos pela
Previdência!
Um
bilhete postal que é um documento no que respeita à evolução
urbanística da vila e, sobretudo, um documento do generalizado sentir da população. E estes dois bairros, ao contrário do do sonho
do Conde de Monte Real, foram levados a bom termo e continuam firmes, de pé,
mau grado os vendavais. Não aquele vento forte de final da tarde que o barrão
prenuncia, mas outros (muitos!...) a que, mui corajosamente, se continuará a
resistir!...
José d´Encarnação
Publicado em Duas Linhas, 28-06-2020: https://duaslinhas.pt/?p=1561
Obrigada...como de um simples postal se busca..e rebusca e se ensina ...e se aprende.
ResponderEliminarJulguei que tinha comentado este texto tão importante para o conhecimento da vila de Cascais, em tempos idos. Comparando o postal, ou o espaço geográfico da implantação dos bairros referidos que fui percorrendo mentalmente, com a situação de hoje (o constrangimento dos imóveis circundantes no caso do Bairro dos Pescadores) vejo como o progresso é célere em demolir ou constranger o passado. Um dos bairros permanece, sim, mantendo vivo um retalho da vida comunitária dos pescadores de Cascais. Bem haja ao autor, que sempre consegue descobrir estes temas de interesse. Porque a vida é uma cadeia.
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