sábado, 4 de julho de 2020

Portugal furou o bloqueio, mas os ingleses não sabem!

             Todos os noticiários do passado dia 3 de Julho de 2020 (faço questão em registar a data completa!...) veicularam as declarações amargas de Augusto Santos Silva, Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, a comentar o facto de o Reino Unido ter, de certo modo, fechado as fronteiras à entrada de portugueses nas suas (dele) ilhas e desencorajado os ingleses a virem a Portugal.
            Não me admirei, porque a nossa História – independentemente de, em meados do século XIV, se ter selado um pacto de amizade entre os dois países, com o casamento de el-rei D. João I com D. Filipa de Lencastre – está semeada de gestos menos amistosos por parte dos britânicos. Aliás, quando cantamos «Às armas! Às armas! Contra os canhões marchar, marchar!», que canhões eram esses? Os dos ingleses, que, a 11 de Janeiro de 1890, nos haviam feito um ultimato, a obrigar-nos a entregar-lhes os territórios entre Angola e Moçambique, representados no Mapa Cor-de-Rosa.
            Já não refiro o facto de o Tratado de Methween, assinado a 27 de Dezembro de 1703, só aparentemente nos ter sido favorável, porque o interesse britânico era o de chegar mais facilmente aos barcos vindos com o ouro do Brasil…
            Querem bloquear-nos agora? Estão no seu pleno direito de ignorarem a História, pois foi precisamente para os seus barcos poderem vir abastecer-se à costa portuguesa, que Portugal não respeitou o Bloqueio Continental decretado, a 21 de Novembro de 1806, por Napoleão Bonaparte e sofreu, por isso, três invasões que nos depauperaram. Sim, eles, os britânicos acabaram por vir ajudar-nos, mas, não fora o movimento surgido após a frustrada conspiração de 1817 contra o marechal inglês Beresford, mais tempo ainda eles estariam por cá – que a governança, com Suas Majestades no Brasil, lhes era bem favorável!...

            Deixemos, pois, esses senhores e voltemos, então, às invasões, porque nos comprometemos a contar histórias relacionadas com o burgo cascalense.
Sala nobre do Solar D. Carlos, em Cascais, onde terá sido assinada a Convenção de Sintra
            E a vila muito sofreu, na verdade, com a primeira invasão, de 1807, porquanto sua excelência o comandante Junot se aboletou na vila e não dava mostras de querer ir-se embora. Sim, vencemos as batalhas de Almoster e Asseiceira e veio de seguida o representante do governo inglês, Almirante Sir Charles Cotton (1753-1812), que foi quem assinou com os franceses a retirada. Esteve hospedado Cotton na casa de D. Inês Margarida Antónia da Cunha, que foi depois dos Condes da Guarda, os actuais Paços do Concelho. Junot terá estado no que é hoje o Solar D. Carlos e há fortes probabilidades de ali – na bonita sala que a foto mostra – ter sido assinada a tristemente célebre Convenção de Sintra. ‘Tristemente’, porque em nada nos foi favorável, até do ponto de vista cultural, pois muitas das preciosidades que pilhara em igrejas e conventos a soldadesca teve hipótese de levar consigo. Cita João Paulo Ferreira Silva (em Primeira Invasão Francesa 1807-1808, edição da Academia das Ciências de Lisboa, 2015, p. 14), o que um jornal francês noticiou:
            «Os 7000 franceses que desembarcaram em Quiberon vinham carregados de ouro e não havia nenhum soldado que não trouxesse à volta do corpo cintos repletos de moedas de ouro».
            ¿Aliás, não se estipulava também aí, nessa Convenção, que as fortificações e praças apreendidas pelos franceses eram entregues aos… ingleses?
            Não fora, porém, nada serena a estada das tropas francesas por Cascais nesse ano de 1808. Além de os soldados portugueses mais válidos terem sido de imediato incorporados na Legião Estrangeira e enviados para França, foi de polé o tratamento dado, por exemplo, pelo general Morin, conforme relato do então Juiz de Fora, José Belo Madeira (veiculado por Ferreira de Andrade, em Cascais Vila da Corte – p. 260). Diz Belo Madeira que, ao chegar, o general «sem civilidade e em tom napoleónico», lhe «deu uma ordem por escrito para fazer aportar 1200 rações de pão, carne, vinho, legumes e lenha para, no dia seguinte; fornecerem a tropa».
            Não houve luta aberta, mas o povo sabia-as fazer pela calada. Num relato da época se conta que, nas redes, de vez em quando lá vinha mais um cadáver francês!…
            Nove meses aturou Belo Madeira os despotismos franceses, mas, ao recordar esse ano, em carta de 1810, confessa sentir-se desvanecido por não ter visto correr sangue cascarejo; por o povo de Cascais nem um real ter pago para a contribuição dos 40 milhões; por ele próprio não ter desarmado o povo, impedindo assim que o saque à vila tivesse sido maior. Conta também que, um dia, por o general francês o haver desmentido, se foi a ele, lhe agarrou na espada e com ela o trespassaria se os ajudantes não tivessem acorrido...
            O certo é que todas essas atrocidades se cometeram contra o povo português, por termos sido fiéis à «velha aliança britânica». E nem a dita Convenção de Sintra, assinada em pleno coração da vila cascalense entre ingleses e franceses nos valeu!

                                                        José d’Encarnação

Publicado, a 4 de Julho de 2020, em Duas Linhas: https://duaslinhas.pt/?p=1753

3 comentários:

  1. Jaime Rio-Miranda Alcón
    4 de julho às 20:20

    Que podemos decir de los british, que solo han sabido avasallar a cualquier país.

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  2. Um formidável texto de relance à História, neste caso às alianças entre Inglaterra-Portugal. Como se pode ver, os ingleses não mereciam as várias oportunidades. E em relação à pandemia, aí está mais uma demonstração de que os interesses económicos se sobrepõem à solidariedade. Bem haja ao autor por nos trazer, a propósito da última manifestação de "traição", um pedaço da História de Portugal que muito debilitou o então reino. Um bem haja por este brilhante e suculento pedaço de prosa.

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  3. E tradicional a «falta de chá» britânica... o qual, aliás e segundo consta, se não lhes tivesse chegado por mãos portuguesas, ainda menos teriam...

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