O letreiro que hoje nos ocupa
constava já na relação de monumentos da colecção que o bispo de Beja, Frei
Manuel do Cenáculo (1724-1814), nos deixou. Foi, segundo ele, encontrado, em
1778, «em umas casas sitas na praça» da cidade.
Herdou-o,
digamos assim, D. António Xavier de Sousa Monteiro, que foi sagrado bispo a 25
de Novembro de 1883. Era D. António zeloso da sua pastoral mas preocupou-se
também com a preservação e estudo da documentação histórica. E é no quadro dessa
preocupação histórico-monumental que deve entender-se a oferta ao Museu
Regional de Beja dessa pedra que estaria, mui provavelmente, no paço episcopal.
No
Museu está, com o número de inventário
B-118, e, na sequência do desenho que Frei Manuel do Cenáculo deixara e pelas
informações que então circulavam, o seu texto acabou por ser várias vezes referido
em colectâneas dos séculos XVIII e XIX, nomeadamente por Frei Vicente Salgado,
num manuscrito de 1796 transmitido à Academia das Ciências de Lisboa, na
«colecção dos monumentos romanos descobertos em Portugal».
Trata-se
de um grande bloco de mármore de Trigaches, paralelepipédico, de 85 cm de
altura, 57 de largura e 160 de profundidade. A inscrição, que sofreu maus
tratos nos ângulos superior esquerdo e inferior direito, está numa das faces
menores do bloco, inserida num rectângulo moldurado de 39,5 cm de altura por
16,5 cm de largo.
O que diz o letreiro
Inscrito em latim, como era hábito,
o letreiro apresenta-se em letras classificáveis como monumentais quadradas, de
bom recorte, com alinhamento à esquerda, sentindo-se que terá havido o cuidado
de marcar na pedra linhas auxiliares para que o texto saísse a preceito. Aliás,
é de notar que o tamanho das letras não é uniforme, para se poder dar destaque,
em módulo maior (6 e 5 cm), ao homenageado e aos seus títulos.
«A Gaio Júlio Pedão, filho de Gaio,
da tribo Galéria, duúnviro, flâmine dos divinos, devido a ter administrado bem
a república e ter auxiliado com dinheiro o aprovisionamento de víveres – a
plebe, através de subscrição pública» […]
Falta-nos a parte final, onde,
naturalmente, estariam as siglas D · D, interpretáveis como D(ecreto) D(ecurionum)
ou D(ono) D(edit). Era dispensável reforçar que se tratava de uma
homenagem; importante, porém, do ponto de vista político-administrativo e de prestígio,
era que tivesse havido uma intervenção directa dos decuriões, a assembleia de
ilustres da colónia, dando e apoiando, por decreto, essa vontade popular.
O homenageado é um cidadão romano,
inscrito na tribo Galéria, que Augusto atribuíra à colónia. Tem três nomes, sendo
os dois primeiros próprios de uma das famílias seguramente mais renomadas dos
primeiros tempos da cidade, a família Júlia. Recorde-se que César foi Júlio e a
cidade teve Pax Iulia de seu nome. O seu nome próprio, Pedão, é de
origem latina.
Dele se especificam os cargos que
exerceu.
Foi
duúnviro, isto é, um dos dois magistrados escolhidos pelos decuriões para,
durante um ano, estarem à frente dos destinos da colónia. O equivalente ao
nosso presidente da câmara, enquanto a assembleia dos decuriões poderia corresponder
à actual assembleia municipal. O nome ‘duúnviro’ significa que é um de dois,
pois os Romanos, para cargos deveras relevantes não escolhiam apenas uma pessoa
mas duas, para o seu governo ser mais eficaz e não se corresse o risco de assumir
laivos de autoritarismo.
Deve
Gaio Júlio Pedão ter-se notabilizado no exercício desse cargo, porque o
nomearam oficialmente como sacerdote do culto aos imperadores divinizados. Não
era de então nem deixou de ser até aos dias de hoje esta simbiose entre o poder
político e o poder religioso. Para lograr obediência maior, o primeiro imperador,
Augusto, deixou que o considerassem um deus; os seus sucessores seguiram-lhe o
caminho e alguns foram mesmo considerados ‘divos’ após a morte, grande seria a aura
alcançada. Pedão foi flâmine da colónia, presidia às cerimónias rituais de
louvor ao imperador; neste caso, ter-se-á optado – quiçá por se estar em
período propício a que rapidamente a um imperador outro sucedesse – por lhe dar
um título plural: é «flâmine dos divinos»!
Um exemplo!
Terá sido no exercício da sua
magistratura que Pedão granjeou os favores do povo. Na verdade, na epígrafe vem
claramente escrito o motivo pelo qual mereceu tal distinção: por ter
administrado bem a república e por ter ajudado a anona com o seu dinheiro.
«República» tem aqui o significado
de «res publica», ‘a coisa pública’, o conjunto dos cidadãos, e não o sentido
que hoje damos ao termo. Anona era o erário público. Estamos, pois, perante
alguém que não hesitou, em tempo de carestia ou de apuros financeiros, em ter
desembolsado do seu dinheiro para suprir o que estava em falta. Um exemplo!
Perguntar-se-á se se tratava de algo
mais ou menos comum nesse século I da nossa era. Creio bem que não. Com efeito,
gestos desta envergadura não poderiam passar despercebidos e mereciam relevo,
como neste caso mereceu. Também pela mesma época, em Clúnia, uma cidade do
centro da Hispânia (conserva na actualidade essa designação), os ‘amigos’ de
Lúcio Calvísio Agrícola, que foi magistrado e flâmine de Roma e do divino
Augusto, forneceu trigo ao povo, no momento em que o erário estava em dificuldades.
Em Dénia (hoje município com o mesmo nome da província espanhola de Alicante),
homenageou-se alguém, cujo nome desapareceu por fractura da pedra, que foi
igualmente notável benfeitor dos Denienses, pois logrou abastecer de água
salubre a cidade, trazendo-a, com elevado dispêndio financeiro, por sítios de
mui difícil percurso, e ajudou os munícipes contribuindo com víveres para o
erário, sem hesitação, no momento em que se passava por uma crise gravíssima.
E que monumento é esse?
Logo em 1984, quando pela primeira
vez nos debruçámos com mais atenção sobre o monumento perguntámos: «Pedestal de
estátua? São impressionantes as dimensões do monumento, sobretudo a sua
espessura». Estávamos a olhá-lo de frente, para a inscrição, e a espessura equivalia,
portanto, à profundidade.
Também Abel Viana achou estranha a
forma do monumento: «Deve ter sido soco de grande monumento ou silhar de
entrada de um pórtico».
Cumpre dizer que, de facto, a
inusitada forma do monumento não causou perplexidades, não levantou questões,
até que, observando melhor, decidimos perguntar, em 2012: não será o pedestal
de uma estátua equestre? A ideia foi germinando, sucederam-se acaloradas trocas
de impressões e, hoje, a hipótese transformou-se em certeza: as singulares
dimensões da pedra com a inscrição gravada no lado menor exigem essa
classificação!
Proposta de reconstituição, por José Luís Madeira |
Mais uma vez, um documento epigráfico
romano aparentemente ‘inofensivo’, que até passou despercebido aos
investigadores mais atentos, acaba por trazer lustre a uma cidade, que deu honra
ao mérito! Não será, pois, inoportuno reclamar que seja recompensada: que o mérito
lhe seja concedido!
José d’Encarnação
Publicado em Diário do Alentejo (Beja), nº 2065, 13-11-2021, p. 13.
Se alguém alcançava favores do povo e era homenageado por isso, era bom sinal...Mas passando por esse detalhe (na verdade bem importante) da singularidade de "uma estátua equestre de um magistrado local no mundo romano", lembro-me muito do culto da personalidade elevado à deificação. Teremos herdado isso, também? Pena que não tenhamos adoptado o exemplo de quem tratava tão bem "a coisa pública" que até era capaz de usar o seu pecúlio para equilibrar o erário público ameaçado.
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