Não resisti e fotografei o estado de
lastimável decrepitude total do Teatro Rosa Damasceno, em Santarém. Uma
punhalada. Aquelas janelas sem vidros, aquela arquitectura típica do estilo de Amílcar
Silva Pinto, «modernismo radical» se lhe chamou, com muitos apontamentos da
arte ‘deco’ próprios dos anos 30. Tudo em irreparável degradação. Como foi
possível? E, por oposição, regozijei-me – que se me perdoe… – com os 56 anos,
ora cumpridos, do Teatro Experimental de Cascais e com a vida do nosso Teatro
Gil Vicente.
Grito doloroso servido em baixela
Difícil resumir as emoções, os
sentimentos, as reacções por que o espectador passa ao ver esta Beatrix
Cenci, na versão da Doutora Graça P. Corrêa, que também assina a encenação
e a dramaturgia.
A jovem viveu no século XVI e
permanece uma lenda, símbolo da resistência, até à morte, contra a tirania,
consubstanciada na figura hedionda, cruel e desumana do pai, conde de linhagem.
Chamo ao espectáculo «grito doloroso
servido em baixela», por ser lancinante, difícil de aceitar, mas, ao
mesmo tempo, a oportunidade para toda uma equipa, esmerando-se ao limite, mesmo
arrostando com a apregoada – mas sentida! – ‘maldição’ de Beatrix, nos brindar
com ele servido em baixela.
Do
espectáculo em si se falará noutra altura. Quedemo-nos, por agora, no texto e
no antídoto que ele pretende inocular. Sim, inocular. Era bom que inoculasse.
Qual potente vacina contra todos os covides que nos ameaçam e perturbam.
Grito actual inoportuno?
Na pasta de textos vêm, além dos
currículos dos elementos da equipa artística, da equipa técnica e dos actores,
a apresentação da autoria de Graça P. Corrêa («Beatrix Cenci em 2021»); quatro
passagens alusivas a Beatriz Cenci na literatura (Charles Dickens, Herman
Melville, Stendhal e Nathaniel Hawthorne); a transcrição do excerto de um livro
de Graça P. Corrêa, em que analisa o livro de Percy Shelley, Os Cenci, do
1º quartel do século XIX, em cuja versão se inspirou para escrever esta peça;
e, finalmente, breve trecho em que Ros Murray se refere à versão dramatúrgica
desta história encenada por Antonin Artaud em 1935, interrogando-se se
estaremos perante o «preâmbulo a um teatro da crueldade». De permeio, reproduções
de quadros e de esculturas sobre o drama de Beatrix, a mostrar como, ao longo
dos séculos, ele tem sido recordado. Aliás, como para exorcizar o espírito da
jovem – que, reza a tradição, se passeia de cabeça decapitada nas mãos pela
ponte de Roma, na noite anterior ao aniversário da sua execução – aí se pôs uma
lápida a proclamar que, a 11 de Setembro de 1599, Beatrix ali foi «vítima
exemplar de uma justiça injusta».
«Para quê contar esta história tão
pesada e agonizante numa época já de si tão conturbada e tortuosa, e que tão
pouco tem de genuína alegria e luminosidade?» – pergunta Graça P. Corrêa. E
responde:
«Para
lembrar a opressão, vasta e entranhada. Para lembrar que a revolta é uma arma
contra a injustiça. Para afirmar a liberdade luminosa da vida contra a mesquinhez
servida pelo autoritarismo».
Dói ver. Importa, porém, que se veja
e se medite!
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 340, 2021-11-24, p. 6.
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