–
Quando saíres daqui, qual é a primeira coisa que vais fazer?
– Amigo, eu quero ir ver o mar! –
respondeu prontamente o recluso.
E não admira – que nós próprios, os
que temos o privilégio de viver diariamente perto dele, esboçamos largo sorriso
no momento em que, regressados da viagem de alguns dias, o voltamos a contemplar.
Não foi acaso ser de Cascais ao Guincho
a primeira pista ciclável aqui lançada e a sempre enigmática Boca do Inferno
pode compendiar em si toda essa mística sedução da orla, que fascinou Fernando
Pessoa e Aleister Crowley.
Há um génio ali, encantador. Já aos
Romanos encantara, nesta íntima fusão do mar, das dunas e da serra. Sim, a orla
vive da serra e a serra vive da orla, ao sentirmos, como Camões, que «ali a
terra se acaba e o mar começa». Do outro lado, frente à Praia das Maçãs, se
ergueu, afinal, em tempo desses romanos, templo ao Sol e à Lua, fascinados decerto
pela suave dolência dos poentes.
Alexandre Jorge, aqui nado e criado,
alma de artista, não poderia, pois, deixar de passar para os seus desenhos e
aguarelas tal beleza singular. Fá-lo na suavidade azul das suas aguarelas a
cativar instantâneos; mostra-o na eloquente sobriedade dos seus desenhos.
Apetece
contemplar ao vivo o mar irrequieto, a placidez da serra e a irrequietude da
rala vegetação dunar; mas Alexandre Jorge acaba por nos prender também e, com
ele, ali ficamos, quedos, como que acariciados pela brisa, quando não
fustigados pelo vento forte, também ele portador de mensagem singular.
Instantes
captados, eternizados instantes a saborear o pormenor das dunas, a Peninha lá
no cimo, o rochedo agreste aqui, o Cabo da Roca ao fundo, este pinheiro quase
nu, aquele solitário veleiro na linha do horizonte... É a paisagem a assumir
função dominante, a impor-se ao nosso olhar, a reter-nos – porque, no frenesim
quotidiano, assim carecemos de parar, a observar pormenores que o Artista viu e
a nós passaram despercebidos.
Uma
viagem cá, bem localizada sim; mas eficiente trampolim para uma outra
viagem, lá, no inconsciente, ao necessário encontro connosco mesmos.
Cascais, 16 de Dezembro de 2021
José d'Encarnação
Abertura do catálogo da exposição de Alexandre Jorge, realizada de Dezembro de 2021 a 20 de Janeiro de 2022, no Forte dos Oitavos. Foi colocado num painel, no final da exposição. Publicado também em Duas Linhas, a 15-12-2021 https://duaslinhas.pt/2021/12/a-mistica-seducao-da-orla-maritima/ .
Um texto tão bonito como a paisagem que descreve e, como o autor mesmo refere, alimenta a veia criativa do pintor referido. Mais uma exposição que talvez ainda tenha oportunidade de ver, se outras urgências não se impuserem... Gostei desta introdução do Historiador e Arqueólogo a evocar a presença romana, a captura de espaços de características únicas de solo e subsolo. E de paisagem, como esta em que mar e terra se abraçam com a permissão das dunas. Muito grata por mais este pedaço de bela prosa.
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