segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

E senti assim a partida…

Prof. Doutor J. M. Pedrosa Cardoso
Foram meses de muito sofrimento, encarado sempre, porém, com a maior serenidade. Dúvidas clínicas, tratamentos de choque, internamentos, altos e baixos. Acima de tudo, serenidade, esperança, o esboçar dum sorriso aberto. Porventura, na certeza de um dever cumprido, bom caminho calcorreado mesmo que por veredas difíceis.

No último mês, a consciência perfeita de que a meta estava bem próxima e que convinha preparar-se para, corajosamente, a cruzar. Começaram, pois, os preparativos e, a 14 de Novembro, a esposa escrevia-nos:

«Não pode receber visitas, apenas eu o posso ver. Está sereno, sem dores, muitíssimo cansado. Preparado para a viagem onde será recebido pelo PAI CELESTIAL. Ontem escrevi a seu pedido as músicas que se vão ouvir na sua partida, no velório. Pediu que fosse feito silêncio e nada de LÁGRIMAS. […] Fiquem tranquilos, porque a PAZ está connosco. Darei notícias».

E a mensagem ditada, que eu não lograria ler sem impertinente nó na garganta. Manuela quis que ficasse gravada na pagela in memoriam que nos entregou. A mensagem sob a sua colorida foto sorridente; do outro lado, em tons de cinza, as mãos que se entrecruz(ar)am na melodia do Amor – num halo de eternidade!

E é assim:

«A morte não é nada.
Eu apenas atravessei para o outro lado do Caminho. Eu sou eu, vocês são vocês. O que eu era para cada um de vocês continuarei a sê-lo. Chamem-me pelo nome por que sempre me chamaram, conversem comigo de forma espontânea, como sempre fizeram. Vocês continuam a viver no mundo das criaturas, eu agora vivo no mundo do Criador! Não utilizem um tom diferente, solene ou triste. Continuem a rir daquilo que nos fazia ruir juntos.
Rezem, riam, pensem em mim. Rezem por mim.
Que meu nome seja pronunciado como sempre foi. Sem ênfase alguma, sem sombra ou tristeza.
A vida continua a ter o mesmo significado que sempre teve, não houve nenhuma quebra de continuidade. Porque deveria estar fora dos vossos corações, apenas porque estou fora da vossa vista? Eu não estou longe. Apenas atravessei para o outro lado do Caminho… Eu estou à espera… aqui ao lado.
Vocês que ficaram aí sigam em frente. A vida continua linda como sempre foi.
Está tudo bem». 

Ainda não eram 10 horas de 10 de Dezembro. A partida fora a 8, dia da Imaculada Conceição, outrora Dia da Mãe em Portugal.

No silêncio do Centro Funerário, após as orações rituais, «lembra-te, ó homem, que és pó», as preces íntimas, as emoções em tropel… irrompeu, glorioso, o Aleluia de Haendel. Como pedira. Frémito nosso. Silêncio total.

Depois, o sinal – sim, pode abrir a porta! Pesadas e lentas, as cortinas desviaram-se. A essa, sem pressa, seguiu o seu caminho. E nós ficámos.

ooo

Como José Maria Pedrosa d’Abreu Cardoso pedira, as cinzas serão espalhadas pelo mar de Lagos, a cidade que, depois de Guimarães, mais o acarinhou. A foto escolhida para recordação é a dele, sorridente, na entrevista, em Abril deste ano, à rádio da sua terra natal, a contar o que seriam as músicas por ele escolhidas para a sua Semana Santa.

Da Manuela e do Zé Maria, guardarei, indelével, o forte testemunho de Vida perante o cenário da Morte.

Cascais. 13 de Dezembro de 2021

                                                José d’Encarnação

1 comentário:

  1. Agora estou eu com os olhos embaciados, depois de ler palavras (de todos) tão lindas. Que lição de vida tão perto da morte! Quem privou com o Doutor José Maria Pedrosa Cardoso, mesmo que por pouco tempo, reconhecia nele o ser humano que aqui se descreve. E como lhe devo (por generosa intervenção do autor deste belo texto) a bondade, delicadeza e competência de apresentar o meu livro. Se ele acreditava que ia só para o lado do Criador, deve lá ter um lugar digno do cidadão exemplar que sempre foi. Partiu em paz. Estará em paz. Foi um prazer conhecê-lo, meu Amigo. Foi assim que eu lhe falei (e repito agora) quando tomámos um café para lhe dar o livro que ele iria apresentar.

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