Paisagem
dum verde contínuo, sem vedações. Pasciam tranquilas e vim a saber que andavam
por ali à solta. Sabiam onde era o curral e para lá iam quando o sol ameaçava
pôr-se. Nem precisavam de chamamento ou sinal. De manhã, ao levantar-me, abri a
janela e uma das vaquinhas estava mesmo ali, indiferente ao movimento dos
humanos a acordar no pequeno hotel. Foi em Galway, na Irlanda, 11 de Setembro
de 1994.
Em
Maio de 1990, pernoitara eu em Angra do Heroísmo, na ilha Terceira. Saíamos de
manhã para a Praia da Vitória, pela estrada supostamente uma via rápida. Avisaram-me
de duas coisas: 1ª) pode em Angra estar tempo de Verão e na Praia ser Inverno;
2ª) é via rápida, sim, mas vaca tem prioridade e deves parar para a deixar
passar.
Claro,
veio-me à cabeça A Visita da Cornélia, o programa televisivo de 1977 para
sempre ligado aos inesquecíveis Raul Solnado e José Manuel Fialho Gouveia. E
também – essa, uma imagem mais antiga – a do queijinho da «vaca que ri».
Aconteceu,
pois, que, ao barrar de manteiga a torrada quentinha, me chamou a atenção a
frase gravada na embalagem:
Congratulei-me
com o seu criador. Pela originalidade e
pelo significado profundo. «Felizes»! E outra frase havia: «365 dias de
pastagem».
Por isso me surgiram as memórias de
Galway e dos Açores e, concomitantemente, a indesmentível boa disposição da Cornélia
e o focinho simpático da «Vaca que ri».
Deixo ligado o rádio o dia inteiro
para que o meu gato Clyde se não sinta sozinho. Há produtores que põem música
ambiente nos estábulos. Maluqueira! – dir-se-á. Acho que não. Se nós só
gostamos de muros para termos o prazer de os saltar… porque se há-de privar os
animais dessas regalias!
Raro será o humano que lide com
animais no seu quotidiano que não entenda o significado da felicidade, do
«sorriso», do ronronar sereno, do alegre dar ao rabo de um animal.
Facultando-lhes nós essa possibilidade acabamos por nós próprios dela sermos os
primeiros beneficiários. Não há quem não compreenda a imagem da senhora ou do senhor
que, na fuga precipitada da aterradora lava do Cumbre Vieja, em La Palma, leva
ao colo o cão ou o gato como tesouro prioritário a salvar. A felicidade de uns,
penhor da felicidade do outro. Ainda que pertencendo a reinos diferentes. O reino,
aqui, não interessa! A Felicidade derruba fronteiras!
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 811, 01-12-2021, p. 12.
Já comentei este texto, que também me remeteu logo para os Açores, mesmo que antes já tivesse memórias de umas vaquinhas do Minho que nos forneciam o leite. Primeiro, o que teria acontecido ao meu texto? Às vezes vejo-os repetidos e só publico uma vez, mas voarem, é pior...Na Terceira e em S. Miguel conversava com elas, as vaquinhas, nos prados delimitados por hortênsias. E não sendo bem um instrumento musical, a minha voz não lhes desagradava, também me parecia que elas gostavam de ouvir e respondiam...Não é maluqueira, pois não. E acredito piamente que a "Felicidade derruba fronteiras". Gostei tanto de ler este texto! Muito grata, uma vez mais.
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