quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Elas são felizes!

            Paisagem dum verde contínuo, sem vedações. Pasciam tranquilas e vim a saber que andavam por ali à solta. Sabiam onde era o curral e para lá iam quando o sol ameaçava pôr-se. Nem precisavam de chamamento ou sinal. De manhã, ao levantar-me, abri a janela e uma das vaquinhas estava mesmo ali, indiferente ao movimento dos humanos a acordar no pequeno hotel. Foi em Galway, na Irlanda, 11 de Setembro de 1994.
Em Maio de 1990, pernoitara eu em Angra do Heroísmo, na ilha Terceira. Saíamos de manhã para a Praia da Vitória, pela estrada supostamente uma via rápida. Avisaram-me de duas coisas: 1ª) pode em Angra estar tempo de Verão e na Praia ser Inverno; 2ª) é via rápida, sim, mas vaca tem prioridade e deves parar para a deixar passar.
Claro, veio-me à cabeça A Visita da Cornélia, o programa televisivo de 1977 para sempre ligado aos inesquecíveis Raul Solnado e José Manuel Fialho Gouveia. E também – essa, uma imagem mais antiga – a do queijinho da «vaca que ri».
Aconteceu, pois, que, ao barrar de manteiga a torrada quentinha, me chamou a atenção a frase gravada na embalagem:
        «Feita com natas de leite de vacas felizes e sal... nada mais!».
Congratulei-me com o seu criador. Pela originalidade e  pelo significado profundo. «Felizes»! E outra frase havia: «365 dias de pastagem».
        Por isso me surgiram as memórias de Galway e dos Açores e, concomitantemente, a indesmentível boa disposição da Cornélia e o focinho simpático da «Vaca que ri».
        Deixo ligado o rádio o dia inteiro para que o meu gato Clyde se não sinta sozinho. Há produtores que põem música ambiente nos estábulos. Maluqueira! – dir-se-á. Acho que não. Se nós só gostamos de muros para termos o prazer de os saltar… porque se há-de privar os animais dessas regalias!
       Raro será o humano que lide com animais no seu quotidiano que não entenda o significado da felicidade, do «sorriso», do ronronar sereno, do alegre dar ao rabo de um animal. Facultando-lhes nós essa possibilidade acabamos por nós próprios dela sermos os primeiros beneficiários. Não há quem não compreenda a imagem da senhora ou do senhor que, na fuga precipitada da aterradora lava do Cumbre Vieja, em La Palma, leva ao colo o cão ou o gato como tesouro prioritário a salvar. A felicidade de uns, penhor da felicidade do outro. Ainda que pertencendo a reinos diferentes. O reino, aqui, não interessa! A Felicidade derruba fronteiras!
 

José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 811, 01-12-2021, p. 12.

 

1 comentário:

  1. Já comentei este texto, que também me remeteu logo para os Açores, mesmo que antes já tivesse memórias de umas vaquinhas do Minho que nos forneciam o leite. Primeiro, o que teria acontecido ao meu texto? Às vezes vejo-os repetidos e só publico uma vez, mas voarem, é pior...Na Terceira e em S. Miguel conversava com elas, as vaquinhas, nos prados delimitados por hortênsias. E não sendo bem um instrumento musical, a minha voz não lhes desagradava, também me parecia que elas gostavam de ouvir e respondiam...Não é maluqueira, pois não. E acredito piamente que a "Felicidade derruba fronteiras". Gostei tanto de ler este texto! Muito grata, uma vez mais.

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