Intrigante,
a imagem da capa: Cristo com Sua coroa de espinhos? Homem pensativamente
acabrunhado, sob esse «jugo» (qual?) ainda que proclamadamente «suave»?
Refiro-me
ao mais recente livro de poemas do consagrado poeta albicastrense António
Salvado, intitulado precisamente O Suave Jugo. Uma edição MCMN, apoiada
pelo Município de Castelo Branco. Outubro de 2021. 56 páginas. Bem sugestivos
desenhos a carvão de Miguel Elias, dramáticos na sua negridão e emaranhada
textura.
Na
II, elucida de novo o Autor (p. 23), estão incluídos poemas «dispersos por
revistas portuguesas e espanholas» (muitos foram mesmo traduzidos em castelhano,
embora aqui venha só a versão original), «e em horizonte temporal, no que se
refere à sua publicação, muito largo». Abre-a uma triste flor de largas pétalas
nuas. Na p. 42, Cristo carrega a cruz; na 44, está crucificado.
A
III parte é um rei mago no seu camelo quem na abre. Mais poemas nascidos desses
encontros dos poetas com Deus, que se me permita a alteração sintáctica.
Se
o último poema do livro, pungente oração, consubstancia todo o sentir do Poeta
não ousarei afirmá-lo, embora o pressinta. Todas as emoções, amarguras, confidências,
soluços por que, ao longo do livro e do tempo e da vida, foi passando? Quiçá.
Primeiro,
uma dúvida sua: se Deus se dará conta de que nele, Homem, se cruzam «o céu e a
terra», que é como quem diz esse diálogo permanente entre a montanha e o vale,
o subir e o rastejar.
Sente-se,
afinal, remador, a cortar a força das águas para chegar aonde Ele existe «sem
tempo» – e o Homem a carecer de tempo, qual borboleta que, fechada no casulo,
espera o momento de o romper... Contudo, é também prisioneiro, a implorar
libertação – «Olhos abertos mas sem nada verem, / passos cansados mas sem
movimento…»), tendo a impressão de que, afinal, o seu Senhor está bem longe.
Por ele suspira, alfim: «Antes do sal da morte, / Senhor, que eu chegue a Ti».
Perpassa
por todo o livro esse arreigado misticismo, que busca arrimo em S. Juan de la
Cruz, Santo António, S. Francisco, Santa Teresa de Ávila…
Publicado
o livro num 3º trimestre do ano, aureolado de permanente ligação com o Divino,
o Autor não poderia deixar de aludir ao Natal. E fá-lo com aquela maviosidade
que do Menino promana («mãozinhas cheiinhas de ternura»), não sem, no poema
«Endividam-se…» (p.14), pôr mesmo o dedo na ferida aberta por muitos Natais de
artifício, no doloroso contraste entre o «jantar bem lauto e bem comido» e «o
doce olhar da Mãe enternecido / e o bafo d’animais p’r’ò
aquecerem…». «Natal sem presépio» (p. 29) evoca os incêndios de Pedrógão
Grande: «onde acolher-Te em tal destruição / […] p’ra que outra vez Tu possas
renascer / na manjedoura que também ardeu?». Não esquecendo estoutra prece
singela: «Rogo-Te: que a Tua mão / ponha fim à pandemia» (p. 31).
Lê-se
de afogadilho este O Suave Jugo – que, afinal, não foi tão suave assim,
nem o de Cristo e muito menos é o nosso! – na avidez de querer mais e chegar ao
fim. Erra, porém, quem, ao terminar, ouse pôr-lhe um ponto final. Não há ponto
final a pôr. Reticências talvez – a obrigarem a voltar atrás, aqui e além, naquele
momento mágico antes do quotidiano adormecer.
José d’Encarnação
Publicado em Reconquista [Castelo Branco] nº 3961, 10-02-2022, p. 31.
Uma recensão lindíssima a um livro que deve ser notável. Especialmente porque, acabada a leitura, apetece repescar momentos que apelam à reflexão. É isso que se espera da escrita literária, também. António Salvado é um Poeta muito querido, com uma vastíssima obra reconhecida em Portugal e fora do pais. Este belo texto deu-me vontade de conhecer mais este livro. Muito grata, José d´Encarnação.
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