Aquando de
escavações, quer as da villa de São Cucufate (Vidigueira) quer na villa
de Freiria, em Cascais, amiúde encontrei numismas, porque cedo me habituei a
olhar para o chão que piso. Sempre em contextos indefinidos, não susceptíveis,
por isso, de virem a servir de elemento de datação de um qualquer estrato
arqueológico. Atribuíram-se sempre a perdas ocasionais. E eu não mais reflecti
sobre o assunto.
Sucedeu,
porém, que, em 2019, várias semanas a fio, no chão de terra do parque de
estacionamento por onde passeava com o meu cão, eu dei em encontrar moedas.
Sempre de mui pequeno valor: 1 cêntimo, 2 cêntimos. 5 cêntimos, 10 cêntimos…
Morrera
inesperadamente o João, o rapaz que todos os dias ali estava para ajudar a
arrumar os carros. Recebia gorjetas dos automobilistas e era com esse dinheiro
que lograva sobreviver. As moedinhas encontrava-as eu um pouco por toda a
extensão do parque, mas com mais frequência num espaço limitado, próximo do
local de saída das viaturas, onde o João habitualmente estava. Não me pareceu
que resultassem de perda ocasional, embora, de facto, também se pudesse pensar
que o cavalheiro ou a dama que deixasse cair moeda de valor mínimo se não
preocupasse em a apanhar, que dava muito trabalho e não compensava!
Mas,
perguntava-me eu, haveria assim tantas pessoas a deixarem cair moedas sem as
apanharem? Afigurou-se-me estranho e, por isso, optei por outra explicação: o
João, quando lhe davam moeda pequena, acabava por a deitar fora, considerando-a
sem préstimo. Assim expliquei eu o facto de, ora hoje ora amanhã, ao olhar para
o chão, deparar com uma moeda.
Foi esta a
história que engendrei, facilmente aceitável, creio, atendendo à mentalidade de
um arrumador de automóveis, sem instrução. Ainda que pobrezinhas, as moedas
assim ‘perdidas’ e achadas detinham a sua eloquência e serviram para documentar
uma atitude. Aliás, noutra ocasião quase simultânea, ao atravessar um outro
parque de estacionamento, apanhei também uma moeda de 2 cêntimos, certamente
porque, também aí, o «guarda» preferia valores mais… consistentes!
José d’Encarnação
Comentários
Também já fui, sem sequer saber o que era, arqueólogo. Nasci
junto a uma antiga cidade romana, Miróbriga. Chamávamos-lhe a
"escavação", porquanto, nas férias escolares de verão, por lá
apareciam uns senhores que, com colheres de pedreiro, sachos diversos e
pinceis, se entretinham a mexer nas pedras e na terra.
Mondei trigo sobre a terra normal que encobria um grande
conjunto de construções, sem que se soubesse que cobriam aquelas paredes. Ainda
hoje acho estranho como, sob a acção de ventos e chuvas, foram para ali
transportadas terras e pedras de xisto macio suficientes para cobrir tudo o que
hoje se pode observar nas Ruínas de Miróbriga de Santiago do Cacém.
Poucos eram os sinais que insinuasse a existência, a não ser
uns vagos cacos, e lá está, uma ou outra moeda de carcomido cobre.
Arqueólogo mais que falhado, percebo agora terem sido aqueles
fragmentos de moeda atirados para ali por algum arrumador de quadrigas
despeitado pela mixuruquice da gorjeta. É que, ao que parece, existiu naquele
lugar um hipódromo em que se organizaram corridas.
. Maria Fernanda Pereira
Firmino Silva
Santiago do Cacém!!! Saudades! Conheço o local dessas ruínas romanas bem
interessantes. O desporto da corrida de automóveis já vem de longe!!! O meu filho João trabalhou lá
vários anos e eu deslocava-me lá com frequência para estar com ele. Terra pacata e pouco dada a modernices, ao contrário da
outra moderna e mundana logo ali ao lado e construída à sombra de Santiago de
Cacém. Óptimas férias que lá passámos.
. Firmino Silva
Maria Fernanda Pereira
Nasci ao lado dessas ruínas. Fazia sentido associar Santiago do Cacém ao
desporto automóvel, onde chegou o primeiro desses veículos que veio para
Portugal, o Panhard Levasseur importado pelo Conde de Avilez, o titular de um palácio
que existe junto ao Castelo.
Esse automóvel ainda existe, julgo ser pertença do Automóvel
Club de Portugal. Foi também quem marcou a primeira indemnização por acidente
de viação. Atropelou um burro em Palmela e o Conde teve de o pagar.
Quando a Alfândega procedeu ao seu registo, o funcionário
deparou-se com a dificuldade da definição da natureza da máquina.
Os muçulmanos, ao chegar, nunca quiseram as cidades romanas.
Miróbriga foi destruída, e o islão instalou-se mais a nascente, na colina onde
está o castelo que encima a cidade.
Quem mais se interessou pelas ruínas de Miróbriga foi o
Bispo de Beja e Arcebispo de Évora, Frei Manuel do Cenáculo. Que foi quem
procedeu à maior recolha do espólio até então abandonado.
Gostei que tivesse gostado da minha terra.
·
Maria Fernanda Pereira
Adorei conhecer o castelo e a colina com as construções
antigas e a Misericórdia. Gosto desses caminhos só que moedinhas pretas ou
romanas, não encontrei nada
·
Firmino Silva
Maria Fernanda Pereira
A igreja que se encontra adossada ao Castelo é a Igreja Matriz. A Igreja da
Misericordia é um pouco mais abaixo, a meio da encosta. Próxima, está também a
Igreja das Almas, que sempre conheci como Casa Mortuária, a anteceder os funerais
para o cemitério, com muito mau gosto instalado dentro das muralhas do Castelo,
e onde ainda se encontra.
Ao redor havia três ermidas, todas elas abandonadas pela
igreja. Na base da encosta do castelo, a oeste, a Ermida de S. Pedro; a norte,
e um pouco mais afastada, a Ermida de S. Sebastião, polivalente nos seus usos.
Conheci-lhe morada de ciganos e chegou a ser um estabelecimento de senhoras
ditas mal comportadas. Em terceiro lugar, a Ermida de S. Braz, junto às ruínas
de Miróbriga. Além de palheiro e de abrigo de muares, a última utilidade que
lhe conheci, aquando da minha última visita, foi a de servir para a venda das
entradas para visitar as ruínas.
Tive o maior gosto em ser seu cicerone.
·
Maria Fernanda Pereira
Obrigada. De facto, a pacatez de que falei, pareceu-me
excessiva, pois nada de informação de actividades culturais, históricas, ou
ambientais a autarquia à data PCP oferecia, o que estranhei. Mas disseram-me
que era mesmo assim, e por tal, a a cidadezita ao lado
cresceu! Foi um gosto tê-lo por companhia!
. Maria B Fernandes
Aqui perto de onde moro havia um descampado onde todos os
dias estacionavam carros. Sempre ali estava um arrumador à caça de uma
moedinha. Quando ia com o cão à rua passava por lá, sempre encontrei moedas de
1, 2 e 5 cêntimos. Quer dizer que o arrumador as deitava fora.
Comentário meu
Agradeço aos três comentadores o que
tiveram a gentileza de escrever. E assim se ficou a conhecer melhor a cidade
romana de Mirobriga e o seu envolvimento histórico, humano e urbano.
Depois de Frei Manuel do
Cenáculo, múltiplas campanhas arqueológicas se fizeram, tendo sido, por
exemplo, D. Fernando de Almeida um dos arqueólogos que mais terá contribuído,
antes das intervenções mais recentes, para dar a conhecer o sítio.
Não havendo automóveis no tempo dos
Romanos, o hipódromo de Mirobriga destinava-se a corridas de cavalos.
Conhecem-se mais dois no território actualmente português: um terá sido em
Balsa, junto a Tavira, mas ainda não está a descoberto; o outro em Lisboa,
identificado no Rossio, aquando das obras para o metropolitano.
Aconselha-se, pois, uma visita a
Miróbriga, que dispõe de excelente Centro Interpretativo.
Quanto à eloquência das moedas…
estamos conversados!
José d’Encarnação
Bom, achei delicioso o texto sobre a matéria das moedas (eu raramente encontro) e sobre a construção da teoria. Muito plausível. Aqui para nós, quem dá moedas de tão pouco valor, não tem um pingo de respeito pela dignidade alheia, seja quem for o arrumador, ou o modo como vive. É preferível não dar. De modo que o João encontrou uma forma original de guardar o seu tesouro. Deve estar a divertir-se à grande...
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