O clima social vivido no Império Romano, há dois mil anos, era, porventura, bem diferente daquele que, a determinado momento, se imaginou, ao atribuir a essa sociedade o depreciativo epíteto de ‘esclavagista’, por o escravo ser, então, uma classe social; mas, se bem compararmos os escravos d’outrora com os actuais, quase apetece proclamar: «Que venha o Diabo e escolha!». O monumento de que vai falar-se poderá trazer, a esse propósito, algum esclarecimento.
O monumento
Não se estranhe que dê o nome de «monumento» a esta
pedra com letras, de 51 cm de alto por cerca de 30 de largo e 26/27 de
espessura. Que não é ‘monumental’ não é, no sentido de grandiosidade física; é ‘monumental’,
porém, no seu significado profundo.
Dizem-me
que já dela se não sabe. Eu tive, no entanto, a felicidade de a fotografar a 22
de Maio de 1981, na arrecadação da Herdade da Almocreva, Penedo Gordo, freguesia
de Santiago Maior, herdade também chamada da Algramassa, onde existe, como se
sabe, a vistosa villa romana de Pisões.
Foi o Dr. Fernando
Nunes Ribeiro quem, no âmbito dos trabalhos arqueológicos ali levados a efeito
sob sua direcção, a encontrou, em 1967. Coube, todavia, a Justino Mendes de
Almeida e Fernando Bandeira Ferreira o seu primeiro estudo, publicado no volume
LXXIX, de 1969, da «Revista de Guimarães», nas páginas 61 e 62. Uma breve nota,
como era seu hábito, na série de notícias a que, nessa década, sob o título «Varia
Epigraphica» (‘coisas várias sobre Epigrafia’), se dedicaram a redigir. Uma
iniciativa em boa hora tomada, porque pouco interesse ainda havia por essas ‘pedras
com letras’ e eles acabaram por dar a conhecer muitas inscrições novas e
proceder à revisão de leitura de outras.
Pensamos que se
trata de uma árula, ou seja, a miniatura de um altar. Também na actualidade,
levados por uma devoção extrema, nos apeteceria, por vezes, mandar erguer
capela ou até santuário ao nosso ‘santinho’ mais querido. Na impossibilidade,
manda-se gravar uma lápide ou acendemos uma vela e, se curados formos de maligna
doença num braço, encomendamos braço em cera para prantar lá na capela! Assim
os romanos: um pequeno altar consubstanciava o voto, com a vantagem de ser fácil
colocá-lo em lugar apropriado.
Neste caso, há
uma dúvida que nos espicaça, porque a parte superior da pedra está partida: ¿será
que haveria ali uma concavidade a indicar que não era altar mas sim pedestal de
uma pequena estátua, como são – mal acomparado – as imagens que vemos nos nossos
oratórios familiares? E porque não? Já voltaremos ao assunto!
A inscrição
A inscrição à deusa da Saúde |
Na verdade, importa é desvendar o segredo: o que é que
está escrito na pedra? Escrito em latim, como era de regra, e com siglas e
abreviaturas, porque as pessoas conheciam o seu significado e assim se poupava
dinheiro na gravação.
Traduza-se,
pois, o letreiro:
«À
Saúde! Pró nosso Gaio Atílio Cordo, o servo Catulo cumpriu o voto de livre vontade».
Não
poderia ser mais oportuna esta lembrança num tempo – como é o nosso, de epidemia!...
– em que à Saúde se confere papel fundamental. Deificaram-na os Romanos! Havia
uma deusa a invocar sempre que a doença surgisse, como Santa Bárbara quando troveja:
era a deusa «Salus»! Daí vem a palavra ‘salutífero’.
E
o que é nós vemos? Um servo a invocar a deusa pelo bem-estar e prosperidade do seu
dono!
Os investigadores
que nos precederam não compreenderam o significado da sigla N e chegaram mesmo a
considerar que poderia ser mais um nome do servo, o que não tinha, de facto, sentido,
pois o servo só possuía um nome e o deste era Catulus. Catulus!? E
tinha esse nome algum significado? Quiçá, sim, porque ao servo se punha sempre um
nome que agradasse, como nós hoje – salvo seja! – aos animais de estimação.
Catulo, em latim, significa cachorrinho. Custa-nos a pensar que se desse o nome
de «Cachorrinho» a um servo, mas se verificarmos que é o diminutivo de «catus»,
‘sagaz’, ‘hábil’, não ficaremos tão
surpreendidos assim…
E,
afinal, que significa o N? Já tivemos ocasião de o saber quando tratámos dos
dois servos, Primogene e Félix, que mandaram fazer um busto ao espírito
divinizado da «nossa Secunda» (Diário do Alentejo, 13-08-2021, pág. 1).
Exacto, também aqui o N é a sigla do adjectivo possessivo ‘nosso’. E voltamos
aos nossos dias:
– O meu Toino
trata disso, não te preocupes!
Frases destas não
são correntes no cotio alentejano? O adjectivo possessivo a demonstrar ternura,
sereno ambiente familiar. Assim o quis demonstrar Catulo!
E quem seria Catulo?
Estranha-se que um servo assim se preocupe com o seu
senhor. É que ele não seria um servo qualquer!
Escreveu
o Doutor Jorge Alarcão, em 1976:
«Qual
seria a parte dos escravos na exploração latifundiária do Alentejo? A questão
parece-nos uma daquelas para as quais nunca acharemos resposta. Referências literárias,
não as há. Quanto a documentos epigráficos, o único que Júlio Mangas cita como testemunho
de escravo empregado em trabalhos rurais no Alentejo é a ara de Pisões, mas este
mesmo é muito incerto quanto à natureza do escravo».
Júlio
Mangas escrevera, em 1971, um livro sobre os escravos e os libertos na Espanha
romana e sugerira que Catulo seria um escravo «que provavelmente trabalharia na
agricultura para o seu dono, G. Atilius Cordus, a quem devia pertencer a ‘villa’
romana de Pisões». Decerto Jorge Alarcão não manterá hoje essa opinião de incerteza,
porque não parece despicienda a hipótese de Catulus ser o feitor ou
capataz da ‘villa’ de Pisões, ou seja, aquele a quem o senhor encarregara
de gerir a herdade, cargo que, em Latim, se designava pela palavra «vilicus». Daí
também, obviamente, o seu interesse em que o senhor estivesse bem! Na 3ª edição
do seu livro «Portugal Romano» (1983, p. 120) Jorge de Alarcão repete o que já
afirmara em 1974: a «villa» de Pisões «foi propriedade de uma família de nome
Atília, como se deduz de uma inscrição à deusa Salus ali encontrada». Estamos
de acordo: Catulo ergueu monumento à deusa da Saúde, porque muito prezava a
saúde do seu senhor! A colocar no larário familiar, em lugar de relevo nas
termas da casa senhorial ou na sala de jantar – seria sempre uma prova de dedicação
e de boa harmonia social!
E assim se prova como – mais uma vez! – mui singela pedra com letras nos traz informações importantes acerca dos nossos antepassados romanos! Nesse caso, um dos ricos agrários do termo da cidade de Pax Iulia!
José d’Encarnação
Publicado no Diário do Alentejo [Beja] nº 2081 (III série), 11-03-2022, p. 12.
Adorei a leitura deste maravilhoso texto onde, uma vez mais, a Epigrafia é a estrela. Fui remetida ao passado, claro, e tive necessidade de rever imagens dessa soberba villa romana de Pisões, no concelho de Beja. O que aprendi com esta leitura! Já tinha lido que o tratamento a um escravo na antiga Roma, nada tinha a ver com as escravaturas de hoje. O senhor precisava dos servos, até como confidentes, e a noção de que eles tinham um valor afectivo também, fazia com que lhes desse tratamento justo, condigno. A questão do possessivo é muito curiosa: vinca uma ligação e manteve-se em uso até muito recentemente. Ainda cheguei a ouvi-la...Um abraço, muito grata por este artigo tão especial.
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