sexta-feira, 16 de setembro de 2011

«Da pupila dos meus olhos!»

Confesso que, no momento que decidi iniciar a breve série de apontamentos sobre as mensagens patentes em grafitos do tempo dos Romanos, a ideia teve como origem o facto de, com a Dra. Clara Portas, eu ter estudado um sugestivo grafito achado em Mangualde, na chamada «Citânia da Raposeira». Acabámos mesmo por publicar essa breve nota no nº 45 (1993) da revista Ficheiro Epigráfico (nº 204).
Fora gravado após a cozedura, em gesto corrido, no bojo de uma pequena tigela de loiça fina (a que os arqueólogos dão o nome de terra sigillata), cor alaranjada, 140 milímetros de diâmetro. Peça graciosa, portanto, e de uso doméstico.
Pareceu-nos que se poderia ler OCELLI, ainda que do C apenas restasse a terminação superior, uma vez que dois dos três fragmentos da tigela colavam precisamente aí.
Claro que, tendo em conta o que já aqui se disse acerca do modo como se identificavam os lotes de cerâmica no momento em que se colocavam no forno, o mais normal seria interpretar a palavra como o genitivo de um antropónimo e traduzir «de Océlio», uma vez que se regista, de facto, esse nome, embora muito raro. Contudo, aqui o grafito foi feito após a cozedura! Tinha, por conseguinte, uma intenção bem diferente, sobretudo se pensarmos que estamos perante… uma tigelinha, mesmo a jeito de ser usada como presente!...
Assim o interpretámos, pois. Em latim, a palavra ocellus é o diminutivo de oculus, «olho»; e nas vezes em que o seu uso está documentado envolve-o uma atmosfera de ternura: o Oxford Latin Dictionary aponta-o “in tender or emotional language”, «darling», «pupila dos meus olhos», aplicado «to things that are particularly precious or beautiful». E uma das passagens de Plauto mais citadas neste contexto é: Sine tuos ocellos deosculer, voluptas mea, «Deixa-me beijar ternamente os teus olhinhos, volúpia minha!»…
Daí até à nossa imaginação de um gesto foi pequeno o passo: o amante pegara na taça, nela gravara a palavra e… à amada a entregara: «É tua, pupila dos meus olhos!».

Publicado no quinzenário Renascimento [Mangualde], nº 577, 15-09-2011, p. 13.
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Post-scriptum
Permita-se-me que registe, agradecendo-o, novo comentário enviado pelo Doutor Azevedo e Silva:
«Achei engenhosa a interpretação dada ao referido grafito, inscrito numa taça por um anónimo enamorado para depois a oferecer com ternura à sua amada. Fecunda imaginação com sólido lastro do saber específico! Para dizer a verdade, fascinou-me a interpretação. Parabéns.»

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