Sabe-se, de vez em quando, que numa lixeira ou num recanto qualquer se encontram livros, papéis abandonados, que mente curiosa adregou olhar para eles e verificar serem, alfim, documentos de interesse para a história duma terra, duma empresa, duma família…
Hoje, que o espaço falta e a documentação digital ganha preponderância, esse problema do cada vez maior abandono da memória consignada em documentos de papel pode assumir gravidade – porque um Povo, um concelho, uma família sem memória perdem as suas raízes e acabam por ter dificuldade em planear futuro.
Aquando do 25 de Abril, a memória ardeu em fogueiras! Remodelações administrativas, falecimentos e subsequentes querelas sucessórias… alimentam as lixeiras de agora, inexoravelmente trituradas para reciclagem depois. E morre a História!
Por isso rejubilam os arqueólogos quando deparam com uma lixeira antiga, manancial de mui preciosa informação. E, como temos visto, até os cacos lhes interessam! Diligentemente tentam colá-los, para reconstituírem as formas originais e, sobretudo, para completarem eventuais grafitos nelas existentes.
Assim aconteceu numa escavação em Alter do Chão, no Verão de 2009. A telha estava partida em pedaços; vislumbravam-se rabiscos; procuraram-se cuidadosamente todos os pedacinhos na terra dali retirada e… o milagre aconteceu: a inscrição reconstituiu-se! E assim ficámos a saber que o escravo, operário da olaria romana decidira ser diligente, há dois mil anos atrás, e, não contente com ir anotando a quantidade de telhas que ia fazendo, escreveu que se chamava Vernaculus e que trabalhava na olaria de Castor, situada em Abeltirium (o nome romano de Alter do Chão)!
Abençoado!
Publicado no quinzenário Renascimento [Mangualde], nº 576, 01-09-2011, p. 13.
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Post-scriptum
Teve o Doutor José Manuel Azevedo e Silva, meu prezado colega na Faculdade de Letras de Coimbra, a gentileza de me enviar, por correio electrónico, no passado dia 6, o seguinte comentário:
«Grato pelas "Notas e Comentários" sobre o artigo "O escravo que era diligente", publicado no Renascimento, de Mangualde, meu concelho natal [...].
O artigo é exemplar em vários aspectos, nomeadamente no estilo e no conteúdo. A história da telha romana de Alter do Chão é fabulosa. Sugere-nos a epifania de um milagre. De igual modo pertinente é a chamada de atenção para a destruição de documentos que calam para sempre a voz da História.
A propósito, refiro uma experiência pessoal idêntica. Fui convidado pela Câmara Municipal de Gouveia para escrever um livro sobre uma figura ilustre, mas quase desconhecida, natural de Arcozelo da Serra, falecida há cerca de 50 anos. O livro foi publicado no ano passado e tem por título José Inês Louro. A Vida, a Obra e a Memória do Médico-Filólogo.
Apaixonei-me, de certo modo, pela referida figura, porque a sua vida e formação científica têm muitos pontos de contacto com a minha: foi sempre trabalhador-estudante ou, dito de outro modo, trabalhou para poder estudar e formar-se em Medicina, no Porto, em 1934. Investigador por natureza, com publicações já no tempo de estudante, trocou a Medicina pela Filologia, vivendo, até ao fim da vida, da magra mesada de Bolseiro do Instituto de Alta Cultura. E, no entanto, foi um dicionarista, um gramático, um ensaísta, em suma, um investigador de elevado nível, especialista reconhecido do Grego e do Latim.
Durante o processo de elaboração do livro, a certa altura pretendi consultar o acervo da sua biblioteca particular e eventuais documentos e papéis pessoais. Fui informado que, no acto das obras de restauração da sua casa do Arcozelo para ser (como foi) transformada em unidade de turismo rural, a sua biblioteca foi junta com o entulho. Uma senhora da aldeia conseguiu salvar 8 livros e o seu precioso caderno de apontamentos de estudante do ensino liceal nocturno.»
segunda-feira, 5 de setembro de 2011
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