O salão de actos
da colectividade foi pequeno para acolher tanta gente que desta sorte também
quis manifestar o seu apreço por tão louvável e singular trabalho.
Diga-se,
para já, que não poderia ter sido mais bem escolhido o local para esta
apresentação. Já quando, no último trimestre de 1989, a Câmara Municipal,
em estreita colaboração com a Associação Cultural de Cascais, realizou a
exposição «Um Olhar sobre Cascais através do Seu Património», foi justamente em
Janes que se apresentou o «núcleo do mundo rural», dadas as características
genuinamente saloias que ainda por ali se mantêm.
Presidiu
à sessão a Senhora Vereadora da Cultura, Dra. Ana Clara Justino, que, após
salientar, com aplauso, o trabalho de toda equipa (coordenada por Conceição
Santos) que eficazmente colaborara na edição, deu a palavra ao apresentador
oficial do livro, o Professor Doutor Virgolino Ferreira Jorge, que começou por
sublinhar quão injusto era o uso depreciativo do termo ‘saloio’, com o significado
de ignorante, rural, pouco civilizado, pois, na verdade, se trata de uma
designação de teor etnográfico que já vem do tempo dos árabes para identificar
os camponeses naturais dos arredores de Lisboa e que justamente a abasteciam de
muitos dos produtos hortícolas, e não só, de que a capital carecia.
Mais de meia centena de informantes
Com
base em minuciosa recolha feita junto de informantes, “todos para além dos
setenta anos, alguns octo e nonagenários, entretanto, vários já falecidos”,
acentuou Virgolino Jorge tratar-se de uma tarefa que «implicou anos de
esforçadas peregrinações pela cercania aldeã da vila, ouvindo, entrevistando e
recolhendo testemunhos directos feitos da palavra, do silêncio e do gesto», «complementada
com uma paciente investigação documental e arquivística e uma perseverante
tarefa de cela, para reflexão e escrita, redigida com o acre da crueza que foi
escutada ou lhe foi relatada em primeira pessoa. Daí que o "eu"
narrativo do texto e do contexto operativo de Saloios de Cascais corresponda a um saber e a uma experiência
feitos e insuspeitos, adquiridos sem distanciamentos, e esteja plenamente
justificado», sublinhou o apresentador.
«Exaustivo
labor beneditino», que obteve concretização num «estudo sério e inédito», enriquecido
por oportuno «glossário da fala saloia» e contendo, como o próprio título indica,
duas partes: a primeira dedicada «aos factos etnográficos», a segunda aos «valores
linguísticos».
Na
Etnografia, os capítulos são: «nascer saloio» (predições acerca das qualidades
do nascituro, por exemplo), «aspectos da «vida do adulto», «vida económica» (a
faina agrícola, o trabalho da pedra e a preparação da cal, a lavagem de roupa
alheia…), «vida imaterial» (dança, canto, religiosidade…), «literatura popular»
(romanceiro, cancioneiro, adagiário, adivinhas, anedotas, contos e lendas).
No
que à linguagem diz respeito, são abordados aspectos gramaticais (fonética, morfologia
e sintaxe), assim como particularidades sintáctico-estilísticas, formas de tratamento
social (saudação, despedida, cortesias e descortesias), expressões idiomáticas,
onomástica (nomes e alcunhas), a toponímia. No final (p. 464-485), exaustiva
bibliografia.
Obra para ler e reler
No
que concerne, por exemplo, aos pequenotes, não quis o Professor Virgolino Jorge
deixar de falar das referências «ao banho higiénico das crianças e às
finalidades terapêuticas da “auguinha de rabo lavado”, aos sinais e predições
acerca do carácter dos nascituros, indicadores de felicidade (chorou na barriga da mãe) ou de
infortúnio (Dês que o assinalou algum
defêto l’encontrou), e à invocação
para afastar as crianças de males perniciosos (benza-te Deus!). Lembram-se algumas enfermidades que afectavam os
meninos de então e obrigavam a tratamentos, os quais eram rematados com uma
súplica final (Dês te dê a bertude qu’ê
já fiz o que pude).»
Enfim,
uma obra para ler, reler e amiúde consultar, porque de tudo aí vai
encontrar-se. Ou, para usarmos, mais uma vez, das palavras do apresentador: «Entendo
o livro de Maria Micaela Soares, substancialmente, como uma impressiva lição de
arqueologia do saber; de um saber inspirador e deliberativo, tributário da
capacidade e do talento intelectuais desta reconhecida Autora, para multiplicar
novos olhares sobre o passado cultural da região saloia cascalense.»
Às
18.47 horas, a Dra. Micaela começou assim: «Saloios, amigos, informantes – eu
fui vossa aluna!». E, em vinte minutos, foi contando da experiência vivida para
levar a cabo a concretização deste «livro de memórias ressuscitadas; explicando
que «rio» era, para o saloio, não apenas o ribeiro mas também aquilo a que ora
se chama ‘tanque’; que nesses recuados tempos se «cavava uma manta para bacelo»
(ora vão lá descobrir o que isto significa!...); que as refeições eram, amiúde,
apenas «de pão e navalha»; que esses «depoimentos duros, rudes e dolorosos»
importa pensar neles, reabilitar o termo ‘saloio’, um homem que também gostava
de falar em verso («Minha mãe mandou-me à água / […] / Mande-me ela namorar /
Verá se eu não tenho jeito!»)…
O
presidente da Câmara aplaudiu a iniciativa, mormente porque ela vem ao encontro
do que hoje mais preconizamos: a salvaguarda da nossa identidade, do nosso património
cultural imaterial, concluindo com uma palavra de esperança.
Encerrou
a sessão, eram 19.20 horas, a Senhora Vereadora, que agrade ceu
a presença de todos, não querendo deixar de fazer alusão aos cortinados de
chita das janelas do salão de actos, tão genuinamente saloios e, por
conseguinte, bem enquadrados em tão agradável e instrutiva sessão.
Publicado em Cyberjornal, 2013-04-22:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&task=view&id=18173&Itemid=30
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