domingo, 17 de janeiro de 2016

Gonçalo dos Reis Torgal (1931-14.01.2016)

         Faleceu no passado dia 14, vítima de doença súbita e fulminante, o Dr. Gonçalo dos Reis Torgal. Faria 85 anos daqui a um mês.
        Gonçalo dos Reis Torgal é, seguramente, um dos vultos que, em meu entender, não pode esquecer-se, paladino como foi na defesa dos valores por que todos nos devemos pautar, nomeadamente os éticos e os patrimoniais.
            Conheci-o em Mafra, em Abril de 1988, por ocasião do I Congresso de Turismo e Gastronomia da Região de Mafra. Fora convidado para fazer uma comunicação, porque era já, na altura, um dos mais conceituados jornalistas de gastronomia, tema que abordava com saber, entusiasmo e mediante uma escrita sempre muito burilada e atraente. E nesse domínio se manteve até à aposentação, porque, mais recentemente, as crónicas que escrevia para o Diário do Minho eram, sobretudo, de crítica ao «estado a que isto chegou», não se poupando a verberar o que se lhe afigurava desprovido dos princípios e dos valores por que sempre se pautara e pelos quais, na sua óptica, a vida pública se deveria pautar. Guardo religiosamente esses escritos, que fazia o favor de pontualmente me enviar, sempre com uma notinha do género «vamos lá ver se publicam»… Publicavam.
            Foi, pois, a nossa – embora à distância, ele na sua Guimarães e eu por Cascais, com Coimbra sempre pelo meio para ambos… – uma Amizade duradoura, feita de cumplicidades.
            E não posso deixar de recordar o almoço de 17 de Abril desse ano de 1988. Acabáramos de visitar a Tapada de Mafra e fomos obsequiados com pratos de caça: javali e veado, se não erro, porque essas eram as espécies da Tapada e um dos objectivos do Congresso fora, precisamente, o de dar a conhecer as potencialidades que, nesse domínio da cinegética, a Tapada podia proporcionar. E recordo perfeitamente que a todos os pratos o Gonçalo fazia os seus comentários de apreciação, sempre acompanhados de um ar jocoso.
            Era, actualmente, o Mordomo-mor da Confraria Panela ao Lume, de Guimarães. Foi, aliás, no âmbito das iniciativas dessa confraria que publicou, em 1995, o livro Roteiro Gastronómico. E certamente se recordarão também as suas duas obras de gastronomia mais recentes:
            As Tripas nunca se Comem Frias, apresentada, a 2 de Julho de 2015, na Associação Recreativa Aurora da Liberdade, em Matosinhos, cuja venda revertia a favor da Associação Social «Lara Santa Cruz», de Matosinhos. Seguiu-se, naturalmente, um jantar de tripas, em Leça da Palmeira.
            Coimbra à Mesa (Tu é que foste à Praça, menino?), apresentado pela Doutora Maria José Azevedo Santos (também ela uma especialista em história da alimentação), na Casa da Cultura de Coimbra, a 10 de Dezembro último.
            Frequentou, com êxito, o Mestrado em "Alimentação. Fontes. Cultura e Sociedade", recentemente criado na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (um ancião que resolveu voltar aos bancos da escola para aprender e, claro, ensinar os demais…). Defendeu brilhantemente a dissertação, sobre temas camilianos, ou seja, a gastronomia na obra deste escritor. Não admira, por isso, que tenha sido uma das docentes do curso, a Doutora Maria Helena da Cruz Coelho a assinar o prefácio de Coimbra à Mesa, onde escreve, a dado passo:
 
            «Coimbra à Mesa conduz-nos em errante boémia e viva saudade por ruelas e becos de restaurantes, adegas, tabernas e repúblicas, por caminhos ébrios de alimentos e bebidas partilhadas alegremente à mesa, por memórias e sentimentos de animados convívios, amistosas conversas e pitorescas histórias de gente que desfruta os prazeres da mesa...».
 
            Era assim o Gonçalo!
            Sócio nº 7 da Associação Académica de Coimbra e seu actual vice-presidente, ‘torcia’ pela Briosa em cada semana e em cada jogo!
            Sobre a Lusa Atenas escreveu, um dia:

            «Saudoso, ontem como hoje, deixei Coimbra e a Universidade. Meio século lá vai. Levei comigo a marca da cidade e da Escola que me acolheu e me habilitou para Vida, quer a objective no sentido profissional, quer no viver do dia a dia. Tenho para mim que o ser e estar que me marca e de que me orgulho, o enraízo no seio familiar, mas o fortaleci na Universidade. A ela estou grato. Saudoso regresso amiúde no quando posso, forçando o quando não posso. Coimbra é a minha Terra a Universidade a minha casa».

            Nas suas crónicas para o Diário do Minho, pegava sempre no título de um livro ou de um conto e ia por aí adiante, filosofando, reflectindo sobre o dia-a-dia, designadamente da política, cujas falsidades não deixava passar em branco.
            O último texto que me enviou, destinado a ser publicado pelo Natal, tinha por título «Arroz do Céu» e começa assim:

            «Como sabem, Arroz do Céu é o inesquecível conto com que abre o livro de José Rodrigues Miguéis, Arroz do Céu e Outros Contos.
            O conto, de forma salutarmente amarga, confronta o nosso bem-estar e sobretudo o sobranceiro viver dos ricos face ao sobreviver, quase só existir, dos deserdados da sorte de quem Deus parece ter-se esquecido, mas de quem por vezes se lembra, dando-nos, por exemplo, essa milagrosa inspiração do Espírito Santo que nos trouxe o Papa Francisco».

            Prossegue, desolado por esse amor ao próximo ter andado tão arredio da nossa vida pública e da nossa governação… Por isso, preferiu brindar-nos com um poema dedicado ao Natal. E termina assim:
            «Com espírito de NATAL, pedindo que neste tempo, que quase nem Dezembro é, porque não faz frio, haja um arroz que caia do céu, em que para Vós tal peço, a que junto desejos de mais venturoso 2016. Que Deus me ouça!».

            Recordar-te-emos sempre, Gonçalo! E que ora já descanses em paz – que bem mereces, pelos enormes exemplos de cidadania que nos deste!
                                                       
                                              José d’Encarnação                                                 

1 comentário:

  1. De: Maria Jose Azevedo Santos
    Enviada em: domingo, 17 de Janeiro de 2016 20:57

    Não foi fácil aceitar a dura notícia do falecimento do nosso Estimadíssimo Dr Gonçalo Reis Torgal. Por ter sido vizinha, e aluna, do irmão Luís, desde jovem (14 ou 15 anos) tive o privilégio de ir conhecendo e beneficiando da simpatia e amizade de muitos outros membros da Família: Senhor D. Januário (primo), Senhora Dona Beatriz (irmã), Dr. Gonçalo, Esposa e Filhos. Seu Pai, médico, era convidado de casa de meu avô paterno, cuja esposa, minha avó, cozinhava lampreia, ao que dizem, “como poucos” («Coimbra à Mesa», p. 113-114, com lapso do nome de minha querida Mãe, que se chamava Ana e não Maria José como eu ). Sou membro honorário da Confraria da Panela ao Lume por sua proposta.
    São, pois, muitas as razões de uma sincera e já antiga amizade.
    Todavia, a orientação, que aceitei com muita alegria, do trabalho de mestrado em História da Alimentação – Fontes, Cultura e Sociedade que apresentou e defendeu em Julho de 2014, com a nota de 19 valores, muito contribuiu para reforçar ainda mais os nossos laços de amizade.
    Comovida, releio a dedicatória que me faz no «Coimbra à Mesa». p. 11:
    «[…] À minha boa amiga... distinguindo no […] curriculum [...] a iniciativa de ter criado na FLUC o curso de História da Alimentação – Fontes, Cultura e Sociedade e, aí, pelo apoio que me deu na prossecução do meu mestrado, sem o qual não o teria conseguido».
    Como era generoso!! Pouco ou nada orientei. As reuniões eram para mim lições de erudição e de História de Coimbra que jamais esquecerei.
    «Ad aeternum», Dr. Gonçalo!

    Maria José Azevedo Santos

    P. S. No dia 10, o livro foi apresentado pelo Doutor Fernando Catroga. Eu apresentei-o no Palace da Curia, no dia 12 de Dezembro, por ocasião do jantar anual da Confraria da Panela ao Lume.

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