Sirgo IV, que ora reúne nada menos do
que 19 títulos esgotados – o 1º, «A Flor e a Noite», data de 1955 e o último
desta série «Igaedus (pelos sulcos da Egitânea)» viu a luz em 2015 –, tem esse
condão de nos servir, em volume de mais de 620 páginas, pratos suculentos,
saborosamente confeccionados em mais de meio século.
Sirgo IV beneficiou, mui justamente, do
apoio da Câmara Municipal de Castelo Branco e do Instituto Politécnico de
Castelo Branco. Uma publicação com a chancela albicastrense de RVJ-Editores,
ISBN 978-989-54396-8-3, 500 exemplares.
Sirgo
é outro nome do bicho-da-seda e, por isso, antigamente, sirgo era o nome da
seda também. Além disso, explica o dicionário que com esse vocábulo se designa
a seriguilha, ‘pano grosso de lã, sem pêlo’.
E
o leitor, de repente, antes mesmo de abrir o livro e quedando-se na imagem da
capa, congeminada a partir de uma pintura de Costa Camelo, pergunta-se pela
razão do título. Será que o autor a dá algures? Ou preferirá que nós o
imaginemos na gestação tranquila das
metamorfoses, ao longo dos seus dias e anos? Ou, modestamente, preferirá dizer
que é lã grosseira o que escreve, ainda que lhe possa, a ele próprio, trazer
aconchego o escrever, tecido mal amanhado?
Sim,
pode interessar-nos a opinião do autor acerca
do que exarou no papel. Uma opinião de agrado, certamente, doutra forma não se
exporia de novo e preferiria a atitude de Bocage: «Rasgo os meus versos!». Não
rasga. Mostra-os de novo. Há quem não goste de se ouvir e deteste ler o que
outrora escreveu. É claro que, 50 anos passados, não se voltaria a escrever
assim, outro é o pensamento, outra a visão da realidade envolvente. Nesse caso,
porque não rasgar? Compreende-se porquê: o Homem – e, por maior razão, o Poeta!
– passou por essas diversas fases e delas foi deixando testemunho através da escrita.
E
António Salvado nunca pôde viver sem escrever! Sem poetar. Sem olhar para a
realidade com olhos críticos, interventivos, semeando de Beleza os seus dias,
por mais amargos que se lhe antojassem. E disso urge dar testemunho. Um volume
como este marca o caminho que se fez
andando, como quis um outro António, o António Machado, «Caminante, non hay
camino, se hace camino al andar!». Mais do que uma antologia, Sirgo IV é, de facto, uma demonstração de vidas. Não uma vida só, a do seu autor, mas
do conjunto de vidas que, ao longo dos anos, junto de si estiveram. Que o Poeta
sente-se, é bem de ver; sente, porém, os outros também.
Não
resisto e abro. Sem preocupação de
páginas nem de datas. Na tentação de
me surgir logo um motivo de sedução.
E
surgiu.
Na
página 205, o poema chama-se «Após o combate» e tem dois tercetos. Não sei que
combate foi, se duma guerra nossa, no Ultramar, se a da Coreia ou Vietname. Vejo
o retrato e (que o Poeta me perdoe!) e reproduzo-o em forma de prosa:
«De
olhos fechados, eles vigiavam-se, desfeitos quase em pó; e, lado a lado,
sucumbidos ao fogo da metralha, difícil distinguir ali, estendidos naquela
solidão, feroz, terrível, quais os amigos, quais os inimigos».
Nesta
prosa fica-se um pouco sem jeito; mas, para mim, que sou prosaico, assim com
vírgulas, o texto sacode-me ainda mais e revela-se claro anátema contra as
guerras, contra todas as guerras: o redemoinho do combate cego, a morte mesmo
antes de o ser, o silêncio mortal que tudo reduz a cadáver, inútil o combate,
afeições desfeitas, sentimentos perdidos… Para quê?
Poeta
é assim. Em palavras poucas, espaçadas por vezes para nos quebrar o ritmo e nos
obrigar a parar, em palavras poucas, um mundo de emoções, mancheia de alertas a
gritar!...
A reedição impunha-se – que a Poesia é para se beber. A
longos haustos!
José d’Encarnação
Publicado em Reconquista
[Castelo Branco], nº 3841, 24-10-2019, p. 34.
Quando alguém que escreve tão bem, e pensa de forma tão ágil, discorre sobre o significado do título de um livro, SIRGO, de António Salvado, apetece ir na onda, talvez pela veleidade de julgarmos assim pertencer à mesma tribo.
ResponderEliminarGrande poeta é o António Salvado, grande mesmo. Do título passei à revisão do trabalho da larva do bicho-da-seda que, a partir de uma baba, suponho, vai construindo o seu casulo. Tal como faz o poeta, que das vivências e memórias, nem sempre atraentes ou gratas, consegue produzir finíssimos os de seda, os seus poemas. Mas isto é divagar. Importante mesmo é ler este belíssimo texto e aprender.