sábado, 16 de novembro de 2019

Juízos temerários

             Teve-se conhecimento, a 6 deste mês de Novembro, através de reportagem televisiva, que um bebé recém-nascido – teria umas seis/sete horas de vida fora do ventre materno – fora encontrado num contentor ainda com o cordão umbilical.
            Louvou-se o sem-abrigo, que deu com a criança. Eu acentuaria também um outro aspecto: é que, sem tecto, com um filho de 16 anos, o sem-abrigo estava mais atento do que os apressados cidadãos, que andamos sempre a correr. Para ele, quiçá, o tempo passara a ter outra dimensão e talvez também olhasse para o contentor com um olhar bem diferente do nosso. Recordo a máxima que ouvi há dias e que anotei, pelo seu significado profundo: «Com quanto mais pressa andam menos vagar têm!». Para o sem-abrigo haveria todo o vagar do mundo para si, que não para descobrir bicho ou pessoa que ali estaria a gemer. Sabia o que era sofrer, o que um gemido trazia dentro – e não descansou enquanto não viu. E salvou uma vida. Quiçá tenha salvado igualmente a sua, porque jamais esquecerá o que se passou e ganhará, sem dúvida, outro ânimo para encarar revezes.
A pintura «Jesus e a pecadora»
            A outra série de comentários – os mais frequentes – prende-se com a atitude da mãe ou de quem para ali atirou o menino nu. Claro, de imediato a comparação: nem os animais assim se comportam!... Um dia, estou certo, se saberá o que, na realidade, aconteceu, que terrível drama determinou um acto tão tresloucado.
            A quem se hão-de atirar pedras? Numa passagem do Evangelho (João, 8, 7), vem a frase de Jesus Cristo: «Quem de vós estiver sem pecado que lhe atire a primeira pedra». Conhece-se bem o episódio. E a frase permanece duma actualidade pungente. Não, pedras não podem atirar-se a este ou àquele, porque – disso estou certo – a atitude, solitária ou não, resultou de todo um conjunto de circunstâncias repletas da maior gravidade. Apetece repetir a estafada do pastor anglicano John Donne, estafada, sim, mas nunca suficientemente consciencializada em casos como este: «Nenhum homem é uma ilha».
            Não é.
          Partiu essa mãe, solitária, imaginamos nós, convencida de que estava só e o seu frágil bote naufragara sem salvação possível nem eficaz SOS. Ninguém lhe ouviria os lamentos, ninguém serenamente escreveria no chão, diante dela, e lhe diria depois, olhos nos olhos: «Passou, vamos recomeçar! Dá cá o braço!». Mas… isso vai mesmo acontecer! E os juízos temerários hão-de esfumar-se de vez…

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 765, 2019-11-15, p. 11.

Post-scriptum: Esta crónica foi escrita no final da tarde do passado dia 7, ainda nada se sabia do que, na realidade, acontecera. Apenas que o recém-nascido fora encontrado. Enviei-a para o jornal, por correio electrónico, às 18.39 horas.

1 comentário:

  1. De facto os julgamentos precipitados não levam a nada de edificante. E depois uma vida foi salva, a vida de um menino atirado a um contentor do lixo...Isto é o milagre verdadeiro. Um belo texto que muito me apraz registar, com a qualidade dos outros textos do blog. Um abraço de parabéns.

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