Louvou-se
o sem-abrigo, que deu com a criança. Eu acentuaria também um outro aspecto: é
que, sem tecto, com um filho de 16 anos, o sem-abrigo estava mais atento do que
os apressados cidadãos, que andamos sempre a correr. Para ele, quiçá, o tempo
passara a ter outra dimensão e talvez também olhasse para o contentor com um
olhar bem diferente do nosso. Recordo a máxima que ouvi há dias e que anotei,
pelo seu significado profundo: «Com quanto mais pressa andam menos vagar têm!».
Para o sem-abrigo haveria todo o vagar do mundo para si, que não para descobrir
bicho ou pessoa que ali estaria a gemer. Sabia o que era sofrer, o que um
gemido trazia dentro – e não descansou enquanto não viu. E salvou uma vida.
Quiçá tenha salvado igualmente a sua, porque jamais esquecerá o que se passou e
ganhará, sem dúvida, outro ânimo para encarar revezes.
A pintura «Jesus e a pecadora» |
A
outra série de comentários – os mais frequentes – prende-se com a atitude da
mãe ou de quem para ali atirou o menino nu. Claro, de imediato a comparação: nem os animais assim se comportam!... Um dia,
estou certo, se saberá o que, na realidade, aconteceu, que terrível drama
determinou um acto tão tresloucado.
A
quem se hão-de atirar pedras? Numa passagem do Evangelho (João, 8, 7), vem a
frase de Jesus Cristo: «Quem de vós estiver sem pecado que lhe atire a primeira
pedra». Conhece-se bem o episódio. E a frase permanece duma actualidade
pungente. Não, pedras não podem atirar-se a este ou àquele, porque – disso
estou certo – a atitude, solitária ou não, resultou de todo um conjunto de
circunstâncias repletas da maior gravidade. Apetece repetir a estafada do pastor anglicano John Donne, estafada, sim, mas
nunca suficientemente consciencializada em casos como este: «Nenhum homem é uma
ilha».
Não
é.
Partiu
essa mãe, solitária, imaginamos nós, convencida de que estava só e o seu frágil
bote naufragara sem salvação
possível nem eficaz SOS. Ninguém lhe ouviria os lamentos, ninguém serenamente
escreveria no chão, diante dela, e lhe diria depois, olhos nos olhos: «Passou,
vamos recomeçar! Dá cá o braço!». Mas… isso vai mesmo acontecer! E os juízos
temerários hão-de esfumar-se de vez…
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 765, 2019-11-15, p. 11.
Post-scriptum: Esta crónica foi escrita no final da tarde do
passado dia 7, ainda nada se sabia do que, na realidade, acontecera. Apenas
que o recém-nascido fora encontrado. Enviei-a para o jornal, por correio
electrónico, às 18.39 horas.
De facto os julgamentos precipitados não levam a nada de edificante. E depois uma vida foi salva, a vida de um menino atirado a um contentor do lixo...Isto é o milagre verdadeiro. Um belo texto que muito me apraz registar, com a qualidade dos outros textos do blog. Um abraço de parabéns.
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