domingo, 3 de outubro de 2021

As cavalhadas de Vildemoinhos

            Remontam as cavalhadas, se não erro, a tempos imemoriais, quiçá até aos torneios da Idade Média. Uma demonstração clara do apreço que o Homem tem pelo cavalo e da forma como este se adapta a, mui garbosamente, mostrar quão orgulho sente em ser elegantemente montado e mais bem ajaezado ainda!
            Gozam essas simbólicas encenações – sempre a luta entre o Bem e o Mal, os Cristãos e os Mouros (na tradição peninsular) – de grande prestígio, como, aliás, todas as manifestações em que se privilegia essa intimidade entre o Homem e o cavalo. Só quem nunca privou, por pouco tempo que fosse, com este nobre animal é que poderá manifestar admiração pelo que acaba de ler. Em Siena, por exemplo, a corrida do Palio, que se desenrola num ápice na Piazza del Campo, constitui o momento maior das festividades anuais e cada contrada – nome que ali se dá aos bairros em que a cidade se divide – sonha em ter, ano após ano, esse máximo galardão, que demonstra a quase simbiose entre o cavaleiro e o cavalo.
            De um modo geral, não têm as cavalhadas esse carácter bairrista, a lembrar as marchas de Lisboa, não. São, antes, na sua génese, uma exaltação, a manifestação da alegria de viver! Como o são também, na sua enorme elegância, as galas da Escola Portuguesa de Arte Equestre, por exemplo.
           Louve-se, por isso, não apenas o facto de Vildemoinhos não deixar esmorecer a tradição – contra tudo e contra todos – mas também, neste caso, a coragem e a magnânime inteligência de ousar perpetuar em livro de papel – sim, de papel! – o fausto do seu regozijo.
         Bem andou, pois, a Junta de Freguesia de Repeses e São Salvador, a freguesia urbana de Viseu em que a aldeia de Vildemoinhos está integrada, ao solicitar a mui conceituado etnógrafo e historiador, o Dr. Alberto Correia, que desse conta das conclusões a que, a esse respeito, a sua investigação lograra chegar. Mas festa é festa, é cor e, por tal motivo, a equipa não ficaria bem sem o magnífico contributo de um fotógrafo não menos conceituado, José Alfredo.
            O resultado?
O que não poderia deixar de se esperar: um álbum excelente, digno de figurar, em lugar de relevo, na sala de visitas não só de todos os «trambelos» (nome popular dos naturais de Vildemoinhos), mas de todos os viseenses e não só! «Corpo e Alma de uma Aldeia» – quão ajustado é o mote, para um património imaterial que (alguém aventou, um dia!…) remonta a meados do século XVII, precisamente a 1652, por ocasião da festa anual de São João Baptista, e que merece, não há dúvida, ser classificado!
Edição de prestígio, a que o Município de Viseu quis associar-se, primorosamente maquetizada por Sónia Ferreira e executada com maestria pela Gráfica Maiadouro, em bom papel couché. Preciosa, a imagem das guardas do volume, como preciosas são todas as imagens – pela cor, pelo saboroso instantâneo, pelo pormenor eloquente (aquele «tradicional charuto» do alferes da bandeira, resguardado pelo típico chapéu e vigiado pelo laçarote preto!...), sempre deliciosamente sublinhadas por inesperada legenda, de inevitável toque poético (ai, a curiosidade ingénua do menino, às cavalitas do pai e de ‘martelo’ na mão, na pág. 38!...).
            Folheia-se e volta-se a folhear. Pára-se aqui e além (cuidado, moça, não te queimes na fogueira, que o rosmaninho cheira bem e a labareda é matreira!...). Admiram-se, na p. 108, os espelhos do mar…
Ah! É que «cavalhadas» não é apenas essa arte de montar a cavalo e desfilar com garbo, o que ainda mais aguça o engenho é a confeção dos carros alegóricos, plenos de simbolismo, de requintada ironia e ímpar graciosidade. Só visto! E ainda bem que o álbum aí está, para definitivamente se fixarem imagens de um encanto sem par. Aliás, na p. 79, Alberto Correia não hesita: «As páginas seguintes iluminam, com a brevidade do texto e o denso testemunho do documento fotográfico…».
Imagens e texto sabiamente irmanados, porque, se essas imagens nos prendem, dir-se-á que lhes não fica atrás a sábia eloquência do texto, sempre bem burilado e documentado a rigor, não somente com base em notícias vindas a lume nos mais diversos periódicos, mas também em volumes de consagrado rigor histórico. História, sim, mas pura Etnografia igualmente: a festa, como elemento aglutinador da comunidade que «se ancorava sobre as margens da ribeira» de Pavia: «esse estranho grémio dos artífices que lavravam canastras de vime ou cestos de corra, das tecedeiras de colchas e mantas, das padeiras e forneiros com as noites perdidas para que houvesse pão, dos carpinteiros, das costureiras e de outros ainda, todos na inquieta buca do pão familiar» (p. 31) – é um etnógrafo que escreve!…
            Em síntese: depois de, na I parte, Alberto Correia se haver debruçado sobre a terra e a gente de Vildemoinhos, analisa, na II, a natureza das cavalhadas e a sua «plural função», onde faz a sua história desde as origens à actualidade; versa a III parte sobre o cortejo moderno: como se organiza, como a construção dos carros se pode chamar «uma arquitectura de prazer»… Finalmente, merece destaque, na IV parte, a história das tricanas da aldeia.
            Folheie-se o volume com devoção, para se saborearem as imagens; volte-se a ele depois, com delongas, para melhor se entender o que é, afinal, esse «corpo e alma de uma aldeia», que – e esse é o voto ! – não se gostaria de ver fantasiado em ademanes alienígenas.

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Diário de Viseu, 21 de Setembro de 2021, p. 7.

 

1 comentário:

  1. Adorei a leitura deste texto. É louvável e estimulante conhecer os "trambelos" (nome espectacular) e saber que uma pequena aldeia se sente orgulhosa de uma tradição local de séculos. Tanto que se rodeia dos apoios, técnicos e humanos especializados, para promover, com ajuda da Câmara Municipal, a publicação de um álbum que a dignifica, a ela, à freguesia, ao concelho. Quanta informação logo no título CABALLADAS -Corpo e Alma De Uma Aldeia - Vildemoinhos, Viseu! E que lição para certas entidades de outros municípios que passam pelos valores e talentos locai sem lhes darem a menor importância. Muito grata por esta publicação.

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