Remontam as cavalhadas, se não erro,
a tempos imemoriais, quiçá até aos torneios da Idade Média. Uma demonstração
clara do apreço que o Homem tem pelo cavalo e da forma como este se adapta a,
mui garbosamente, mostrar quão orgulho sente em ser elegantemente montado e mais
bem ajaezado ainda!
Gozam essas simbólicas encenações –
sempre a luta entre o Bem e o Mal, os Cristãos e os Mouros (na tradição peninsular)
– de grande prestígio, como, aliás, todas as manifestações em que se privilegia
essa intimidade entre o Homem e o cavalo. Só quem nunca privou, por pouco tempo
que fosse, com este nobre animal é que poderá manifestar admiração pelo que
acaba de ler. Em Siena, por exemplo, a corrida do Palio, que se desenrola num
ápice na Piazza del Campo, constitui o momento maior das festividades anuais e
cada contrada – nome que ali se dá aos bairros em que a cidade se
divide – sonha em ter, ano após ano, esse máximo galardão, que demonstra a
quase simbiose entre o cavaleiro e o cavalo.
De um modo geral, não têm as cavalhadas
esse carácter bairrista, a lembrar as marchas de Lisboa, não. São, antes, na
sua génese, uma exaltação, a manifestação da alegria de viver! Como o são
também, na sua enorme elegância, as galas da Escola Portuguesa de Arte Equestre,
por exemplo.
Louve-se, por isso, não apenas o
facto de Vildemoinhos não deixar esmorecer a tradição – contra tudo e contra
todos – mas também, neste caso, a coragem e a magnânime inteligência de ousar
perpetuar em livro de papel – sim, de papel! – o fausto do seu regozijo.
Bem andou, pois, a Junta de
Freguesia de Repeses e São Salvador, a freguesia urbana de Viseu em que a aldeia
de Vildemoinhos está integrada, ao solicitar a mui conceituado etnógrafo e
historiador, o Dr. Alberto Correia, que desse conta das conclusões a que, a
esse respeito, a sua investigação lograra chegar. Mas festa é festa, é cor e,
por tal motivo, a equipa não ficaria bem sem o magnífico contributo de um fotógrafo
não menos conceituado, José Alfredo.
O resultado?
O
que não poderia deixar de se esperar: um álbum excelente, digno de figurar, em
lugar de relevo, na sala de visitas não só de todos os «trambelos» (nome
popular dos naturais de Vildemoinhos), mas de todos os viseenses e não só!
«Corpo e Alma de uma Aldeia» – quão ajustado é o mote, para um património
imaterial que (alguém aventou, um dia!…) remonta a meados do século XVII, precisamente
a 1652, por ocasião da festa anual de São João Baptista, e que merece, não há
dúvida, ser classificado!
Edição
de prestígio, a que o Município de Viseu quis associar-se, primorosamente
maquetizada por Sónia Ferreira e executada com maestria pela Gráfica Maiadouro,
em bom papel couché. Preciosa, a imagem das guardas do volume, como preciosas são
todas as imagens – pela cor, pelo saboroso instantâneo, pelo pormenor eloquente
(aquele «tradicional charuto» do alferes da bandeira, resguardado pelo típico
chapéu e vigiado pelo laçarote preto!...), sempre deliciosamente sublinhadas
por inesperada legenda, de inevitável toque poético (ai, a curiosidade ingénua
do menino, às cavalitas do pai e de ‘martelo’ na mão, na pág. 38!...).
Folheia-se e volta-se a folhear.
Pára-se aqui e além (cuidado, moça, não te queimes na fogueira, que o rosmaninho
cheira bem e a labareda é matreira!...). Admiram-se, na p. 108, os espelhos do
mar…
Ah!
É que «cavalhadas» não é apenas essa arte de montar a cavalo e desfilar com
garbo, o que ainda mais aguça o engenho é a confeção dos carros alegóricos,
plenos de simbolismo, de requintada ironia e ímpar graciosidade. Só visto! E
ainda bem que o álbum aí está, para definitivamente se fixarem imagens de um encanto
sem par. Aliás, na p. 79, Alberto Correia não hesita: «As páginas seguintes
iluminam, com a brevidade do texto e o denso testemunho do documento fotográfico…».
Imagens
e texto sabiamente irmanados, porque, se essas imagens nos prendem, dir-se-á
que lhes não fica atrás a sábia eloquência do texto, sempre bem burilado e documentado
a rigor, não somente com base em notícias vindas a lume nos mais diversos periódicos,
mas também em volumes de consagrado rigor histórico. História, sim, mas pura
Etnografia igualmente: a festa, como elemento aglutinador da comunidade que «se
ancorava sobre as margens da ribeira» de Pavia: «esse estranho grémio dos artífices
que lavravam canastras de vime ou cestos de corra, das tecedeiras de colchas e
mantas, das padeiras e forneiros com as noites perdidas para que houvesse pão,
dos carpinteiros, das costureiras e de outros ainda, todos na inquieta buca do
pão familiar» (p. 31) – é um etnógrafo que escreve!…
Em síntese: depois de, na I parte,
Alberto Correia se haver debruçado sobre a terra e a gente de Vildemoinhos,
analisa, na II, a natureza das cavalhadas e a sua «plural função», onde faz a sua
história desde as origens à actualidade; versa a III parte sobre o cortejo
moderno: como se organiza, como a construção dos carros se pode chamar «uma
arquitectura de prazer»… Finalmente, merece destaque, na IV parte, a história
das tricanas da aldeia.
Folheie-se o volume com devoção,
para se saborearem as imagens; volte-se a ele depois, com delongas, para melhor
se entender o que é, afinal, esse «corpo e alma de uma aldeia», que – e esse é
o voto ! – não se gostaria de ver fantasiado em ademanes alienígenas.
José d’Encarnação
Publicado em Diário de Viseu, 21 de Setembro de 2021, p. 7.
Adorei a leitura deste texto. É louvável e estimulante conhecer os "trambelos" (nome espectacular) e saber que uma pequena aldeia se sente orgulhosa de uma tradição local de séculos. Tanto que se rodeia dos apoios, técnicos e humanos especializados, para promover, com ajuda da Câmara Municipal, a publicação de um álbum que a dignifica, a ela, à freguesia, ao concelho. Quanta informação logo no título CABALLADAS -Corpo e Alma De Uma Aldeia - Vildemoinhos, Viseu! E que lição para certas entidades de outros municípios que passam pelos valores e talentos locai sem lhes darem a menor importância. Muito grata por esta publicação.
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