Causou-me
impressão. Depois de arrancadas portas e janelas, os funcionários entraram nas
casas e foram-nas esvaziando dos pertences que os moradores lá haviam deixado. Tudo
a monte para a rua ou logo para a camioneta. Ainda passei, tímido, junto dum
dos montes; não ousei, porém, olhar com atenção; havia quadros; os móveis
escangalhados… Depois, a máquina fez o resto, o derrube das paredes para tudo se
reduzir a escombros
Foi na semana de 18 de Outubro de
2021. No Bairro Operário José Luís, em Cascais. A 2ª fase de demolições, após
os moradores terem sido realojados. Uma operação prevista. Causou-me impressão,
como homem do património. Não pelas casas, não pelo recheio, mas pela
eventualidade de algum desse recheio constituir memória. Não para os antigos
moradores, que porventura nem disso se aperceberiam, mas para a memória
colectiva. Impunha-se, quiçá, que um técnico do Património tivesse passado
previamente pelas casas e as bisbilhotasse com olhos de… Património.
Tive
pena.
E
explico.
Primeiro: na maioria dos
municípios se chegou à conclusão de que, amiúde, as famílias acabam por deitar
fora fotografias antigas que já nada lhes dizem, até porque nelas há pessoas
que nem sequer conheceram nem sabem quem são. Mas… e como é que estavam
vestidas? Onde é que a fotografia foi tirada? Dados, esses e outros, que
poderiam vir a ser úteis para a investigação histórica local.
Segundo: a estreiteza das
casas tem levado a deitar fora livros, por exemplo. Felizmente, já começa a
haver o cuidado de os pôr, mais ou menos bem acondicionados, junto ao contentor,
a fim de poderem ser aproveitados por alguém. E quem diz livros diz loiças e outros
haveres. O Eurico tem, nesse aspecto, olho de lince e livros em bom estado têm
sido por nós distribuídos por bibliotecas de instituições que muito os
apreciam. Sei, aliás, porque – como tutor de bairro – tenho essa obrigação, que
há mesmo quem, sistematicamente (e nem sempre são os habituais ferros-velhos…),
faça a ronda dos contentores, à cata de trastes aproveitáveis que outrem
abandonou! Abençoados!
Estes, alguns dos livros salvos de um contentor! |
E os papéis de Michel Giacometti?
Sim, é verdade, também lá estão, porque, um dia, a Maria, ao sair de casa
(morava perto da casa que fora do Michel), também lhe causou impressão ver
tanto lixo por ali. Olhou melhor e deu o alerta! Eram os papéis do maestro que
iam ser jogados fora!...
Não foram. Estão no Museu Verdades
de Faria.
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 339, 2021-10-27, p. 6.
Maria Mota Almeida
ResponderEliminarVerdadeiros garimpeiros do Património. Parabéns!
Julia Fernandes
Também me faz impressão o desprezo por tantas recordações que acabam no lixo. Os livros, as fotografias e até os vasos de plantas abandonados contam histórias de gente. Abraço, Zé.
De: Catarina Antunes
ResponderEliminar28 de outubro de 2021 20:35
Fez-me tanta impressão a demolição, não pelo incómodo óbvio do barulho, mas pelas vidas, memórias e histórias que estavam a ser dizimadas! Vão fazer mais demolições?
Triste... mas melhorou com o terceiro ponto.
ResponderEliminarA dada altura, é mencionada, a falta de interesse
ResponderEliminare responsabilidade das autoridades camarárias.
Tratando-se de coisas com tanto valor histórico,
literário, etc.Estranhei, até, um livro de Miguel Sousa Tavares.
O texto tem toda a oportunidade e a sensibilidade de quem gosta de olhar e cuidar do património. Acho que devia ser criada uma entidade camarária para recolher o material aproveitável, porque em qualquer situação um móvel usado pode servir uma família carenciada, os livros podem beneficiar bibliotecas de rua
ResponderEliminarcriadas em espaços de lazer, e o espólio de indivíduos e entidades ligados à cultura, devem ser preservados com a dignidade que merecem. Já agora: um dia li uma história verídica de uns quadros encontrados no lixo que vieram a revelar-se de valor incalculável (por acaso calculado de tal forma que enriqueceram a senhora que os achou) e que deram lugar à abertura de uma galeria de arte.
Arqueólogos escavam obrigatoriamente o terreno onde vai implantar-se algo, para que se não percam certos vestígios; etnólogos / historiadores, sei lá, podiam ser obrigados a vasculhar memórias nesses espaços a destruir!...
EliminarAlberto Correa