quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Estavam no lixo e foram para o museu!

           Causou-me impressão. Depois de arrancadas portas e janelas, os funcionários entraram nas casas e foram-nas esvaziando dos pertences que os moradores lá haviam deixado. Tudo a monte para a rua ou logo para a camioneta. Ainda passei, tímido, junto dum dos montes; não ousei, porém, olhar com atenção; havia quadros; os móveis escangalhados… Depois, a máquina fez o resto, o derrube das paredes para tudo se reduzir a escombros
            Foi na semana de 18 de Outubro de 2021. No Bairro Operário José Luís, em Cascais. A 2ª fase de demolições, após os moradores terem sido realojados. Uma operação prevista. Causou-me impressão, como homem do património. Não pelas casas, não pelo recheio, mas pela eventualidade de algum desse recheio constituir memória. Não para os antigos moradores, que porventura nem disso se aperceberiam, mas para a memória colectiva. Impunha-se, quiçá, que um técnico do Património tivesse passado previamente pelas casas e as bisbilhotasse com olhos de… Património.
Tive pena.
E explico.
Primeiro: na maioria dos municípios se chegou à conclusão de que, amiúde, as famílias acabam por deitar fora fotografias antigas que já nada lhes dizem, até porque nelas há pessoas que nem sequer conheceram nem sabem quem são. Mas… e como é que estavam vestidas? Onde é que a fotografia foi tirada? Dados, esses e outros, que poderiam vir a ser úteis para a investigação histórica local.
Segundo: a estreiteza das casas tem levado a deitar fora livros, por exemplo. Felizmente, já começa a haver o cuidado de os pôr, mais ou menos bem acondicionados, junto ao contentor, a fim de poderem ser aproveitados por alguém. E quem diz livros diz loiças e outros haveres. O Eurico tem, nesse aspecto, olho de lince e livros em bom estado têm sido por nós distribuídos por bibliotecas de instituições que muito os apreciam. Sei, aliás, porque – como tutor de bairro – tenho essa obrigação, que há mesmo quem, sistematicamente (e nem sempre são os habituais ferros-velhos…), faça a ronda dos contentores, à cata de trastes aproveitáveis que outrem abandonou! Abençoados!
Estes, alguns dos livros salvos de um contentor!
            Terceiro: Toda esta conversa há-de parecer um tudo-nada estranha à maioria dos leitores. Pode ser. E também, porventura, a alguns responsáveis camarários. Importa, pois, que se passe ao terceiro ponto e se conte mais uma história. Então conto, porque uma das nossas ‘riquezas’, do Museu da Música Tradicional Portuguesa, é constituída pelos espólios legados: primeiro pelo próprio Mantero Belard, o lindo palacete da Avenida Sabóia, no Monte Estoril, depois por Lopes Graça e, mais recentemente, pelo maestro que entre nós criou, em gloriosos tempos (1993), a Nova Sinfonia Portuguesa, Álvaro Cassuto.
            E os papéis de Michel Giacometti? Sim, é verdade, também lá estão, porque, um dia, a Maria, ao sair de casa (morava perto da casa que fora do Michel), também lhe causou impressão ver tanto lixo por ali. Olhou melhor e deu o alerta! Eram os papéis do maestro que iam ser jogados fora!...
            Não foram. Estão no Museu Verdades de Faria.

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 339, 2021-10-27, p. 6.


 

6 comentários:

  1. Maria Mota Almeida
    Verdadeiros garimpeiros do Património. Parabéns!

    Julia Fernandes
    Também me faz impressão o desprezo por tantas recordações que acabam no lixo. Os livros, as fotografias e até os vasos de plantas abandonados contam histórias de gente. Abraço, Zé.

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  2. De: Catarina Antunes
    28 de outubro de 2021 20:35

    Fez-me tanta impressão a demolição, não pelo incómodo óbvio do barulho, mas pelas vidas, memórias e histórias que estavam a ser dizimadas! Vão fazer mais demolições?

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  3. Triste... mas melhorou com o terceiro ponto.

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  4. A dada altura, é mencionada, a falta de interesse
    e responsabilidade das autoridades camarárias.
    Tratando-se de coisas com tanto valor histórico,
    literário, etc.Estranhei, até, um livro de Miguel Sousa Tavares.

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  5. O texto tem toda a oportunidade e a sensibilidade de quem gosta de olhar e cuidar do património. Acho que devia ser criada uma entidade camarária para recolher o material aproveitável, porque em qualquer situação um móvel usado pode servir uma família carenciada, os livros podem beneficiar bibliotecas de rua
    criadas em espaços de lazer, e o espólio de indivíduos e entidades ligados à cultura, devem ser preservados com a dignidade que merecem. Já agora: um dia li uma história verídica de uns quadros encontrados no lixo que vieram a revelar-se de valor incalculável (por acaso calculado de tal forma que enriqueceram a senhora que os achou) e que deram lugar à abertura de uma galeria de arte.

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    1. Arqueólogos escavam obrigatoriamente o terreno onde vai implantar-se algo, para que se não percam certos vestígios; etnólogos / historiadores, sei lá, podiam ser obrigados a vasculhar memórias nesses espaços a destruir!...
      Alberto Correa

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