Gorgoleja
a fonte, indiferente ao intenso e apressado tráfego da rua, carros um atrás do
outro. Na avenida, passa agora uma ambulância de sirene ligada a gritar
urgências. Amena, a temperatura neste começo de tarde outonal. Tristonho, o
hibisco não quer dar flores; enverdecem os cachos das hortênsias numa tristura
do esplendor passado.
E,
ontem, cacto, decidi visitar-te. Era uma visita adiada, desde que, do Rio de
Janeiro, a amiga Norma me enviara a foto de um igual a ti, com amplas
considerações elogiosas. Sabes que lhe repliquei na mesma moeda e lhe enviei
fotografia tua, a garantir, orgulhoso, que também tinha. O dela viera, muito
pequenino, do Arizona, em 2014. Tu nasceste aqui e confesso que já me não
lembro onde te comprei.
Tens
razão. Foi preciso a Norma me falar para eu me interessar por ti. Rego-te
vagamente, água pouca, porque aprendi seres planta xerófita, que de muita água
não carece e, perdoa-me, tenho dado mais atenção às bem cheirosas rosas e à beldade
ímpar das orquídeas. Desculpa.
Ontem,
decidi penitenciar-me e fui ver-te mais de perto. Estás muito mais crescido e
nada me disseste. Estão a despontar as tuas florinhas roxas, numa timidez,
como que a pedirem licença para aparecer e fiquei encantado. Empoleirado no
escadote, fiquei largos minutos a olhar para ti, para a tua modéstia e
serenidade, para a tua vida sem alarde, e, de vez em quando, decides mostrar
bonita flor, como que a sussurrar: "Eu estou aqui, não reparaste?".
Não, desculpa, não reparara e tens razão que ando ocupado demais com o frenesim
quotidiano e me esqueço de saborear a beleza derredor... Olha que também tu me
saíste cá uma peça, como se dizia outrora! Porquê? – perguntas-me. Porque és um
egoísta! Vestes-te de espinhos, assim te recatas de eventuais inimigos, mas só
os usas para ti, em salvaguarda própria. Não os emprestas a ninguém e não ousas
atirar alguns a quem mereceria umas picadelas valentes! Egoísta! Dêem-te umas
gotas de água por semana e ficas regalado! Não vês quem precisa de uns piquinhos
a preceito? Poderias pedir ao Criador que te desse a possibilidade de atirar,
em tempo oportuno, umas frechadas, a doer!...
Percebo-te,
porém. Abster-se de intervir é, amiúde, o melhor remédio. Como te compreendo! E
acabo por gostar de ti, assim, como decidiste adornar o vaso singelo em que, há
anos, não sei quantos, te coloquei. Em humilde serenidade, continuas a fazer-me
companhia. Bem hajas!
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 809, 01-11-2021, p. 12.
Amigo, que texto bonito!!! Leia para o cacto. Ele ficará encantado, ainda mais florido e, com certeza, muito grato a mim. Perfeito exemplo de globalização: Arizona, Portugal, Brasil. Viva os cactos!!!! bjs
ResponderEliminarTenho de falar mais com os meus. Bj.
ResponderEliminarTenho um cacto igual e gosto muito quando está florido. Porém, a flor só vive por 24 horas.
ResponderEliminarQuanto baste de escrita para chamar poeta ao autor!...
EliminarAlberto Correia
O cacto mereceu um texto, uma mensagem que me lembra o género epistolar. Afinal fica aqui registada para um dia...E embora ditada de perto (do cimo de um escadote) é como se tivesse sido escrita com os olhos com o coração. Modesta? Com isso é que discordo! Que planta mais elaborada, capaz de dar uma no cravo e outra na ferradura, salvo seja. A cor púrpura e a delicadeza das florinhas são belíssimas e os picos, bem...também eu gostava de ter uma caixinha com uns quantos para dar umas picadelas dissimuladas numa gente que eu cá sei...Belo exemplar de texto e de flor.
ResponderEliminar