Começou, na segunda-feira, 18 de
Outubro, a 2ª fase de demolição do Bairro Operário, na Pampilheira (Cascais). O
fim há muito anunciado, e prestes a concretizar-se, do sonho de um visionário
dos começos do século XX muito à frente do seu tempo, a fazer inveja a todos os
ideólogos da integração social.
O Bairro Operário José Luís (Monte Real) nasceu da benemerência do 1º Conde de Monte Real, Artur Porto de Melo e Faro (Rio de Janeiro, 18-8-1866 / Lisboa, 13-12-1945). O título nobiliárquico foi-lhe outorgado por el-rei D. Carlos por decreto de 21 de Outubro de 1907; aliás, a sua filantropia viria também a ser agraciada com a outorga da Grã-Cruz da Ordem de Benemerência, a 18 de Julho de 1938.
Cascais muito lhe deve. Recorde-se
que o aeroporto tem o seu nome por ter sido instalado em terrenos cedidos ao
município. Faleceu ainda criança o seu filho José Luís Cardoso Pereira da Silva
de Melo e Faro, o que lhe causou grande desgosto e motivou a criação da
primeira creche na vila de Cascais, a Creche José Luís. Também por isso se
designou «José Luís» o bairro por sua iniciativa inaugurado, a 12 de Março de
1933, em terrenos por ele doados – onde hoje se situa a parte oriental do
Bairro da Pampilheira.
Uma
obra muito adiante do seu tempo!
Dir-se-á, antes de mais, para melhor
se enquadrarem as demolições a que a Câmara ora lançou ombros, que, do projecto
inicial (já lá vamos!) apenas se construíram quatro alas, num total de doze
moradias.
A
primeira ala, mais próxima da Av. Adelino Amaro da Costa, foi demolida há já
alguns anos, depois de terem falecido os moradores. A Câmara transformou o
espaço em parque de estacionamento, hoje gerido financeiramente pela Mobi
Cascais. A quarta ala, oriental, de três moradias, junto ao Parque da
Pampilheira, também ele gerido pela Mobi Cascais, estava desocupada há mais de
um ano e é essa que ora está a ser demolida. Restam as duas alas interiores, de
que apenas estão habitadas quatro casas.
Já
houve ocasião de fazer referência a esse inovador projecto, de que se publicou
síntese no livro Recantos de Cascais, de 2007, páginas 21 a 24. Daí se
respigam, pois, os elementos mais significativos.
Assim,
importa frisar que a execução do bairro ocupou lugar de destaque no relatório
elaborado pelo Tenente António Rodrigues Cardoso, delegado em Cascais do
Governo da Ditadura Militar, sobre as «obras e melhoramentos realizados pela
Câmara Municipal até 31 de Dezembro de 1932. Datado de 1933, explicita o relatório
nas suas 36 páginas que todas as casas estão dotadas de «dois pequenos
quintais, água encanada e casa de banho devidamente apetrechada com W. C., tina
e chuveiro».
Realce-se:
a preocupação com a higiene e, por outro lado, a possibilidade de, nos quintais,
haver pequeno horto e capoeiras. O projecto ficou a dever-se ao Arquitecto
Jorge Segurado, da Repartição de Engenharia da Câmara.
Há, porém, um aspecto a que nunca se
terá dado a importância merecida, mormente se pensarmos que houve, há pouco, eleições
autárquicas e, em relação aos bairros sociais, algo de semelhante está – agora!
– a ser encarado. E o que é? Ora veja-se: estipulou-se então que as rendas
seriam de 60 ou 80 escudos, «conforme os inquilinos desejarem ser ou não
proprietários do prédio que habitem durante 20 anos»!
As verbas assim conseguidas reverteriam
a favor da creche atrás citada; o fundo de amortização reforçaria as dotações
que «todos os anos a Câmara destinará a novas construções». Não destinou.
O que foi o empreendimento gorado
O terreno doado pelo Conde abrangia
o espaço que, a nascente da Avenida Amaro da Costa, vai, na actualidade, desde
a Rotunda dos Bombeiros até à Rua do Cobre. Uma extensão da ordem dos 2160
metros de comprido por 100 de profundidade.
Previa-se
a construção de cerca de 238 (duzentos e trinta e oito!) fogos e – pasme-se! –
além de um amplo largo a meio, deveriam construir-se uma escola, duas
lavandarias, dois parques infantis, o edifício das caldeiras, biblioteca e
cooperativa.
Que
se envergonhem os paladinos de agora! Sim, o projecto é de há cem anos, ostentando
uma modernidade invejável e… só 12 (doze) fogos foram construídos! Esses que,
pouco a pouco, mais não serão que mera recordação do sonho de um visionário.
Acrescentar-se-á
que – não estudei o processo, mas deduzo que assim tenha sido – o Município se
viu a braços com uma doação cativa de um projecto benemerente, obrigado,
portanto, a cláusulas rígidas. Ou seja, não se poderia dar ao local um destino
qualquer, sem que a tónica social estivesse presente, ainda que ao de leve.
Por
isso, após grandes negociações (adivinha-se), a Câmara optou, na década de 50,
pela figura de expropriação dos terrenos «por utilidade pública» e encarou a hipótese de uma urbanização que previsse, preferencialmente, serviços (instalaram-se
no ângulo sudeste um estaleiro naval e uma grande oficina de metalomecânica),
prédios de renda condicionada para inquilinos determinados, moradias de cooperativas
de habitação.
A
construção dessa parte oriental do Bairro da Pampilheira iniciou-se na década
de 50. Os prédios foram arrendadas segundo a tarifa oficial (renda mensal de
1110 escudos). Deu-se prioridade a funcionários da Standard Eléctrica (fábrica
de semicondutores inaugurada a 28 de Junho de 1968), das Finanças, da Câmara,
das Conservatórias, do Tribunal (o prédio agora alindado com o mural pertence
mesmo ao Ministério da Justiça), dos serviços públicos em geral. Uma área de prédios
de rendimento e outra, dividida em lotes, para construção de moradias de dois
pisos.
Na
actualidade, essa tónica mantém-se. E se o amplo largo previsto no projecto do
Arquitecto Jorge Segurado se não concretizou, o centro do bairro (digamos
assim) é animado pelo comércio que se instalou no rés-do-chão de uma das alas
de prédios de rendimento. Quanto ao destino do canto sudeste, em determinado
momento pensado para albergar «indústrias limpas» (embora desactivado, o
edifício do estaleiro naval mantém-se), está ocupado pelo Hospital CUF Cascais,
por quatro oficinas de automóveis, pelo Centro de Inspecção Automóvel, pelo
Centro de Distribuição Postal (e correspondente balcão de atendimento ao
público), Fábrica de Malhas e Fábrica de Máscaras (pronta iniciativa camarária
para fazer face à pandemia); mais perto do, ora moribundo, Bairro Operário, um
restaurante oriental.
O futuro
A 1ª fase de demolições ocorreu em
Outubro de 2010. Em comunicado distribuído às redacções, no dia 8 desse mês, a Câmara
anunciava:
«O
espaço será agora limpo, prevendo-se num futuro próximo o seu
aproveitamento num projecto a ser
desenvolvido pela Câmara Municipal».
Um
documento do Gabinete de Estudos Urbanos / DUI, da Câmara, datado de Julho de
2004 sugerira uma ampla construção, cuja volumetria não vinha, porém,
mencionada.
Em suma:
«Eu
tive um sonho», proclamou o pastor Martin Luther King, a 28 de Agosto de 1963 –
sonho cuja concretização não chegou a ver. Trinta anos antes, Artur Porto de
Melo e Faro, 1º Conde de Monte Real, tivera estoutro – que também se não
concretizou e cujos ‘restos’ agora recomeçaram o seu processo de extinção.
No
que foi feito em seu lugar, houve cuidado em manter, ainda que ténue, a ideia
de serviço público. Por conseguinte, como não poderia deixar de ser, aqui se
recorda aos responsáveis autárquicos o que esse sonho e essa doação acarretavam
de responsabilidade social. A ter indispensável primazia sobre visões
economicistas, que desvirtuariam o necessário respeito por essoutro sonho de há
um século!
José d’Encarnação
Publicado em Duas Linhas, 21-10-2021: https://duaslinhas.pt/2021/10/era-uma-vez-um-bairro-social
Uma das alas construídas em 1933 |
Após a 1ª fase de demolições (Outubro de 2010) |
A demolição da ala nascente (19-10-2021) |
Altaneiros, eles espreitam!... |
O estudo de 2004. A área do bairro é a tracejada. |
O que irão fazer daquele espaço?
ResponderEliminarUm apanhado de comentários feitos no FB:
ResponderEliminarFerreira Martins
Alguém está à espera!
• Irene Nunes
E a pouco e pouco vão descaracterizando o passado. Tempos que fizeram história. Nova historia, visando mais os interesses económicos e, em muitos casos, sem nada acrescentar à economia... Um forte abraço!
• Manuel Henriques
Certamente outros valores mais altos se levantam € !...
• Maria Esteves
É verdade que sim. Lembro-me tão bem, professor! Grata por não deixar no esquecimento.
• Antonio Chapirrau
Obrigado por todo este esclarecimento, e é assim que as obras doadas por pessoas de bem, e sem outros interesses acabam destruídas e "entulhadas" por aqueles que se dizem de bem com o povo. Que pena, amigo Professor! Eram pessoas com uma visão muito à frente até. Hoje não os há ou há, mas olhando para a sua barriga. Já agora e como sei que estarás sempre atento: o que se passa com o terreno do hospital velho, que também é uma doação?!
Um abraço
Vera Araújo Soares
Com tanta gente a precisar de casa! Sim, porque muitas delas estavam totalmente remodeladas. E mandam abaixo um dos bairros mais antigos de Cascais!
Teresa Valladas Preto
Como sempre atento e pedagogicamente vigilante! Desconhecia completamente a existência desse bairro e a sua história. Já se percebeu o que vai acontecer a esses terrenos!!
Um abraço
Em Cascais vale tudo. Não há qualquer respeito pelas "clausulas" de doacção e muito menos pela memóia
ResponderEliminarUm soberbo e oportuno texto que, de forma bem esclarecedora, nos dá uma imagem das prioridades do poder local no que diz respeito à utilização de espaços públicos. Neste caso sendo privado, fora cedido para favorecimento público, com preocupações sociais e respeito pelos mais desfavorecidos, até na instalação de equipamentos de higiene. Mas acho que a grande confusão dos responsáveis das autarquias, ou do poder em geral, se prende com a noção e urgência do que deve ser o serviço público. Os espaços públicos, ou doados para fruição social, não podem ser geridos como se fossem propriedade privada de nenhum poder. As populações devem ser ouvidas.
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